Por Ana Lucia Vianna
Os
trapistas em Tremembé (1904-1931)
“A
Ordem dos Trapistas, que já havia pertencido à Congregação
Beneditina de Savigny e que agora estava ligada à Abadia
da Trapa na cidade de Perche, na tradicional França, foi
fundada no ano de 1140. Como vocês vêem, uma organização
quasi milenar”. (in “Maristela, O Convento da Trapa”,
de Arthur Audrá, Livraria José Olympio Editora, 1951)
Antigo portal de entrada do mosteiro trapista
Silenciosamente, eles chegaram a Tremembé e ocuparam a antiga
fazenda Palmeira, transformada em Maristela. Era o ano de 1904.
Silenciosamente, passaram a cultivar o solo, criar gado, melhorar
sementes, represar afluente do rio Paraíba para irrigar terras
e gerar energia elétrica para produzir com técnicas
européias.
Aqueles franceses barbudos, que mal falavam o português, transformaram-se
em excelentes professores para uma colônia ainda marcada pela
colonização italiana. Silenciosamente, influenciaram
os hábitos e costumes da pacata população de
Tremembé.
Silenciosamente,
um dia resolveram retornar à pátria mãe.
A história dos monges trapistas que cultuavam o silêncio
ainda não foi resgatada inteiramente. Apesar do esforço
pessoal de gente como Laurindo de Pádua, que recolhe, organiza
e conserva todos os vestígios dessa e de outras histórias,
há muito o que fazer. Os governos municipal, estadual e federal
nunca se interessaram. Quem sabe a Unitau, sob nova direção,
um dia abra os olhos para a riqueza dessa rica história que
nossa repórter Ana Lúcia Viana descobriu nos escaninhos
da igreja do Berisal.
Bem Aventurada Maria, Stella Maris
O
silêncio
Trapista
lembra o silêncio de monges vestindo hábitos brancos.
Os menos afetos à religião, os associam às
melhores cervejas belgas como Orval e Chimay ou a bons queijos como
Port Salut. No caso da vizinha Tremembé, trata-se dos monges
que – lenda ou não – optaram por viver em perpétuo
silêncio.
Na verdade, os monges trapistas desenvolvem o equilíbrio
da oração pessoal e litúrgica com o trabalho
manual e o estudo. É uma comunidade que se sustenta com o
próprio trabalho. A solidão monástica não
os afasta da humanidade e serve, ao contrário, para despertar
a experiência profunda da solidariedade com todas as pessoas,
como o que se pode concluir de sua passagem pelas terras de Tremembé.
A Ordem
Em 1908, na Borgonha, França, monges do Mosteiro Beneditino
de Molesme fundaram um novo mosteiro, o de Cister. A nova Ordem
dos Cistercienses da Estrita Observância (OCSO) se espalhou
pela Europa e desenvolveu uma própria espiritualidade mística.
Já no século XVII, (1664), o abade cisterciense francês,
D. Jean Armand de Racè, realizou uma nova reforma criando
a comunidade de La Trappe, na Normandia. Essa reforma inspirou-se
na vida dos padres do deserto e enfatizava os valores da separação
do mundo, silêncio, trabalho manual, renúncia e obediência.
Outros mosteiros aderiram à reforma e constituíram
congregações distintas dentro da Ordem Cisterciense.
Em 1892, três delas, a de Sept-Fons, Melleray e Westmalle,
agregaram-se e formaram uma nova ordem, a Ordem Cisterciense da
Estrita Observância (OCSO), os trapistas. Eles seguem a regra
de São Bento, o patriarca dos monges do Ocidente, a qual
os orienta no princípio fundamental do “ora et labora”.
A imagem dos trapistas em perpétuo silêncio é
falsa. A observância do silêncio é respeitada
dentro da igreja, no claustro, durante as refeições
e na sala capitular. Também não falam após
o entardecer, o que chamam o “grande silêncio”,
que só acaba no dia seguinte após a eucaristia. A
jornada monástica é rígida e inicia às
2:45 h. da madrugada. Dividem o dia entre o trabalho, orações
e estudo. O repouso é as 19:30h.
Os Cistercienses no Brasil
Antiga
fazenda Palmeira na chegada dos trapistas em 1904
A História do Brasil tem pouquíssimos registros sobre
a presença de trapistas no Brasil Colônia. Rocha Pombo
cita sete ou oito monges de hábitos brancos, trabalhando
entre os índios Tamoios, no Rio de Janeiro, seduzidos por
informações de Villegaignon. A perda do poderio francês
em território brasileiro impeliu-os a voltar à Europa.
Os que não partiram devem ter sido mortos. Pelo menos não
se tem qualquer referência.
São de 1904 os primeiros registros históricos sobre
a vinda dos trapistas para o Brasil, mais precisamente para Tremembé.
Estes monges chegaram ao Vale do Paraíba para escapar de
perseguições na França, vítimas do totalitarismo
que nessa época varria toda a Europa.
Nesta ocasião, o abade da Trapa de Sept-Fons era o Padre
D. Jean Chauttard, amigo do abade Moreau, sacerdote belga que possuía
uma pequena propriedade em Cananéia, litoral de SP. A Trapa
foi oferecida como abrigo para Chauttard. O padre Aléxis
Ducrey, oficial militar antes de sua entrada na trapa, foi destacado
para acompanhá-los até o Brasil e preparar o novo
núcleo da comunidade.
Partiram da França em 1903. Aqui chegando, concluíram
que o litoral não era adequado para a criação
de um mosteiro. Durante um ano inteiro, padre Aléxis percorreu
o estado de São Paulo para comprar uma propriedade. Nesse
ínterim, D. Chauttard viaja para o Oriente em visita às
casas da Ordem e trava conhecimento com o Dr. Ismael Dias da Silva,
originário do Vale do Paraíba. Dias lhe informa que
em Tremembé havia uma propriedade esplêndida e que
estava à venda por preço convidativo.
A proximidade do rio Paraíba e o fato do ribeirão
Chaveco encontrar-se dentro das terras foram pontos decisivos para
a escolha do local. A existência de um curso d’água
é condição essencial para a fixação
dos trapistas. Fechado o negócio, D. Chauttard enviou o primeiro
grupo, composto por treze religiosos da Ordem de Trapa para o bairro
do Poço Grande, na antiga fazenda Palmeiras, no município
de Tremembé. Era dia 13 de setembro de 1904.
Maristela, o primeiro Convento Trapista do Brasil.
Os monges chegaram e iniciaram a instalação da primeira
trapa brasileira, denominada de Bem Aventurada Maria, Maris Stella,
Maristela, a estrela do mar.
Na fazenda reinava o abandono e a desordem. Rapidamente, os monges
repararam os edifícios da velha fazenda com algum auxílio
dos ribeirinhos capaz de acomodar cerca de 30 ou 40 religiosos.
As benfeitorias dos trapistas na região.
Os monges iniciaram o trabalho de evangelização das
populações vizinhas criando escolas e casas por toda
a extensão da propriedade como a do Berisal e a do Poço
Fundo. Em menos de um ano, um surto de prosperidade tomou conta
da região. Recuperaram os milhares de pés de café
abandonados na fazenda e se empenharam no cultivo da cana-de-açúcar,
juta e na criação de gado holandês.
Construíram uma barragem na cota de 1.200 metros na serra
da Mantiqueira e instalaram uma usina elétrica (40 cavalos
de força) capaz de iluminar o Mosteiro e movimentar as máquinas
da oficina e as beneficiadoras de café.
Nas partes mais baixas da fazenda, iniciaram suas experiências
no plantio do arroz. Foi tão bom o resultado das sementes
plantadas na várzea que, em 1908, receberam a visita do então
presidente do estado, sr. Albuquerque Lins. Todo o Vale do Paraíba
passou a cultivar o arroz em grande escala usando o método
difundido pelos monges. Eles criaram e ensinaram os ribeirinhos
a utilizar canais que regam, enxugam ou drenam os terrenos, regulando
a quantidade de água na várzea. Essa mesma técnica
seria utilizada pela colônia japonesa que chegaria ao Vale
do Paraíba algumas décadas depois.
A dificuldade de escoamento da produção das culturas
de juta e arroz foi superada com a construção de um
ramal da Estrada de Ferro Central do Brasil até Tremembé.
A linha foi inaugurada em julho de 1914, pelo Dr. Paulo de Frontin,
diretor da Companhia.
Os trapistas também estão relacionados à instituição
do primeiro curso de teologia no Vale. Em 1920, após contatos
do prior da Maristela com o padre Leon Dehon, foram enviados para
Taubaté alguns padres do Sagrado Coração de
Jesus (Dehonianos) para que se levassem adiante os projetos da Faculdade
de Teologia, até hoje ativa em nossa cidade.
Há relatos de moradores de Tremembé, que ouviram de
seus pais que, os primeiros tabletes de chocolate que experimentaram
foram os oferecidos pelas mãos dos trapistas, mas não
há nada registrado sobre a introdução dessa
guloseima na região por eles.
A partida dos trapistas
Arado antigo utilizado pelos trapistas
Embora a influência econômica e social da trapa crescesse
dia a dia, a Ordem percebeu que não haveria futuro da sua
permanência na região devido à dificuldade de
conseguir estimular as vocações nos moradores locais.
Entre 1906 e 1923 outros monges tiveram de vir da França
para recompor a comunidade. A Ordem decidira que toda casa que não
pudesse recrutar seus próprios membros na região,
onde estivesse estabelecida, teria de ser suprimida.
Na verdade, havia uma escola junto ao Mosteiro para meninos de 12
a 15 anos, visando despertar vocações, mas, sob este
aspecto, os trapistas não lograram êxito. Apenas dois
jovens religiosos brasileiros foram enviados para a Abadia de Sept-Fons,
mas não perseveraram.
Assim, a Trapa foi vendida à Granja Brasil, de propriedade
da família Audrá.
O primeiro grupo partiu de Tremembé em setembro de 1927.
Apenas em março de 1931 partiu o último grupo, após
os acertos da documentação e liquidação
dos bens da Ordem.
Em Tremembé, ficaram 17 cruzes toscas no pequeno cemitério
do convento Maristela. O único trapista que ficou no Brasil
após a partida de seus confrades foi o irmão Leonard
Van Hier, que passou a residir no Mosteiro São Bento, em
SP. Faleceu em 1948.
Os novos trapistas no Brasil
Em 1977, quatro monges da Abadia Trapista Nossa Senhora de Genesee
(Nova York) vieram para o Brasil com o firme propósito de
aqui se estabelecerem. Fundaram o Mosteiro Nossa Senhora do Novo
Mundo, na cidade de Campo Tenente, no Paraná. Tornaram-se
independentes da Casa e têm testemunhado uma corrente de novos
vocacionados, fatores esses que sugerem seu sucesso na região.
Há dois anos, na comemoração do centenário
da chegada dos trapistas no Brasil, 25 monges do Mosteiro de Campo
Tenente visitaram Tremembé. Foram recebidos na Fazenda Maristela,
o berço da Ordem da Trapa no Brasil, hoje um hotel fazenda.
Lá, conheceram os aposentos do antigo mosteiro e puderam
descansar no mesmo local onde, cem anos atrás, abrigou seus
irmãos da trapa francesa. Em contrapartida, os restos mortais
dos trapistas de Tremembé hoje repousam no mosteiro de Campo
Tenente.
O mote dos trapistas “memento mori”, também não
pode ser esquecido. Ele nos lembra que morremos todos os dias e
que a vida é muito preciosa para perda de tempo com o que
não tem valor.
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