No título de seu recente artigo no Jornal Contato (26.11.2021), o professor de história Sebe Bom Meihy faz uma pergunta muito interessante e provocadora:  pode um homem, branco, professor, falar de mulher, negra, semianalfabeta?

A pergunta não cai do espaço sideral, nem é gratuita. É, ao contrário, precisa e oportuna.

O professor Sebe Bom Meihy é o homem branco professor e tem em seu vasto currículo dezenas de trabalhos sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, a mulher negra semianalfabeta. A recente retomada e relançamento da obra da mineira de Sacramento tem gerado curiosos movimentos – digamos editoriais e críticos – que desqualificam a participação de um homem -branco e intelectual- da organização/discussão da obra da autora de Quarto de despejo.

Audálio Dantas, jornalista que lançou Carolina Maria de Jesus

Simultaneamente, ressurge no horizonte a figura de Audálio Dantas, o jornalista negro que lançou Carolina nos anos sessenta do século passado. Ele teria se apropriado da escritora, tolhendo sua (dela) vocação especificamente literária, levando-a a limitar-se a escrever diários? Ele a teria explorado economicamente?

Penso que ambos os movimentos são paralelos.

Ambos desconsideram a complexidade de um sistema literário, construído ao longo de séculos, no contexto de uma sociedade de perfil primeiro colonial e escravocrata, depois independente (até republicana) mas ainda escravocrata e hoje moderna e racista.

A literatura – textos cuja circulação os considera literários – não nasce no coração de um escritor inspirado pelas musas. Nasce num contexto social cheio de esquinas e de ruas com mão e contramão. Sobretudo ruas de contramão.

Sebe Bom Meihy, uma voz acadêmica no combate aos preconceitos

Talvez se possa imaginar Sebe Bom Meihy e Audálio Dantas como esquinas fundamentais na cartografia da obra de Carolina.

Sem Audálio, talvez a obra de Carolina tivesse, infelizmente, ficado inédita, registrada apenas em efêmeros cadernos manuscritos. E ficando inédita não teria dado à Carolina e sua família oportunidade de efetiva melhora na qualidade de vida. E sem Sebe Bom-Meihy e seu parceiro Levine, a obra da escritora não teria tido a larga circulação e o merecido reconhecimento de que desfruta hoje aquém e além-fronteiras. Goste-se ou não, a voz acadêmica é decisiva para tornar visível um escritor e sua obra.

Carolina Maria de Jesus em noite de autógrafos

Deixando agora de lado a questão da obra de Carolina Maria de Jesus, gloso, para encerrar, a bem formulada e tão oportuna pergunta do professor Sebe Bom Meihy: pode uma mulher negra envolver-se com a publicação de obra de um homem branco? [E acrescento] pode um indígena envolver-se com a publicação de obra de uma escritora negra? uma hétero envolver-se com a publicação de obra de uma lésbica? um ateu envolver-se com a publicação de obra de um pastor evangélico?  um judeu envolver-se com a publicação da obra de um palestino?

Fico por aqui.

Abraço o professor Sebe Bom Meihy pela coragem de seu artigo, e também a família de Audálio pela defesa deste admirável brasileiro. Tenho certeza de que o mundo será melhor quando qualquer um puder envolver-se na publicação de qualquer outra e qualquer uma puder ajudar qualquer outro a ter seus trabalhos publicados.

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*MARISA LAJOLO, pesquisadora, crítica literária, autora de literatura juvenil e professora universitária (Unicamp e  Mackenzie),  em parceria  com João Luís Ceccantini organizou em 2009 a obra Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil (Editora Unesp/Imprensa Oficial), prêmio Jabuti o melhor livro não ficção em 2009. Em 2012, seu livro Gonçalves Dias, o poeta do exílio (FTD) foi premiado pela Academia Brasileira de Letras.