Vivia
bem, obrigado, o casal de velhinos, impertigados em
sua avan-çada e sadia idade. Beiravam os oi-tenta,
ela pouco mais nova, senhora de cheiros e sabores históricos
na cidadezinha onde viviam desde sem-pre.
João Alves da Cunha já tivera seus dias
de glória. Em um deles, saudou o governador com
um discurso infla-mado e agradeceu “pelos relevantes
serviços prestados à cidade”. Na
cidade, poucos conheciam esse seu lado retórico,
eloqüente, capaz de levá-lo a um estado
de exaltação insuspeitado até por
amigos mais próximos, os de opa e os de jogui-nhos
inocentes de dominó, em plena praça da
igreja.
Nhá Laura, além de dominar chei-ros e
sabores, era respeitada pelas rendas que fazia, além
de serviços devotados à paróquia,
onde mantinha como impecáveis os adereços
de linho usados nas missas.
As coisas boas também acabam, sentenciou o médico
especialista procurado para uma providência deli-cada
e humilhante, levada a cabo com um profissionalismo
acanhador. Cunha mal podia acreditar em seu infortúnio,
invadido que fora pelo des-pudor da Medicina, que recomendava
outros exames, agora de laboratório, um procedimento
simples, se compa-rado com a invasão de que fora
víti-ma.
Em burgo pequeno, onde tudo e todos sabiam de tudo e
de todos, espalhou-se a notícia com o poder de
uma forte exalação atmosférica,
im-possível de ser contida nos domínios
do casal. Cunha havia relatado tudo a Laura e ela, que
não era senhora de muitos segredos, se encarregara
espalhar a desdita de seu marido.
O que era uma educada rotina, pas-sou a ser uma enorme
ofensa, embo-ra as aparências cuidassem de man-ter
o recatado nome do casal.
Quando ouvia a saudação de toda vida,
da. Laura tinha arrepios de ver-gonha e ódio:
“Como vai seu Cunha, Nhá Laura?”.
Ardia de raiva, imagina-va respostas brutas, tão
indelicadas como era impossível imaginar em dama
sabidamente educada.
De inocente cumprimento, a sauda-ção passou
para o degráu de proposi-tada malícia,
agora do domínio públi-co e – diga-se
– privado. Um dia, o desavisado pároco,
amigo e grato por todos os favores que da. Laura conti-nuava
a prestar, saudou sua ser-va:”Como vai seu Cunha,
Nhá Lau-ra?” Laura disparou seu berro contido
por tanto tempo: “Até o senhor, pa-dre?;
muito bem e às minhas custas”.
O padre, um santo desavisado, não se conteve
em sua inocência: “não sabia que
vocês estavam em dificul-dade. Posso ajudar?”
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