Pela primeira vez
neste outono-inverno, uso água quente para escovar
dentes, lavar rosto, assumir o dia, pelo início.
Uma sensação de conforto me invade, perigosamente.
Sinto que estou beirando pelo ridículo, ao pensar
que o conforto pode me dar idéia de riqueza,
enquanto a realidade aqui por perto de mim, manda que
não fique indiferente aos que saíram às
seis da manhã, pés no chão, ainda
escuro, para tanger o magro gado para a ordenha famélica
da manhã.
A água quente de meu aquecedor, sim, me eleva
a uma condição de “rico” local,
como também me sugerem rico os grandes jardins
de minha casa, piscina, sauna, hidro ao ar livre, salão
de festas, aonde não vou, só entrando
nele para saber se continua limpo, como convém.
Festa mesmo, já não tem feito, por não
ter o que festejar, menos ainda tenho as multidões
que tudo celebravam, só por festejar, uma espécie
de obrigação de estar feliz.
A piscina me arrepia de pavor, com suas águas
límpidas e gélidas, onde já me
joguei inconseqüente, meio báquico, meio
dionisíaco, sarando de qualquer das influências,
tão logo meu corpo louco tocava as águas
glaciais, movendo-me desesperado para fora daquele envolvimento
mortal, inóspito, antártico e branco.
Não me cobrem coerência com a sensatez,
por me perder olhando para os jardins de minha casa,
pura glória para meus olhos e proveito de passarinhos
que por eles andam com a pressa de passinhos picados,
nervosos, como se fossem gente açoitada pelas
urgências bobas do homem. Eles mostram essa pressinha
enganadora, pois na calma verdadeira de suas vidas não
precisam de psicólogos, antidepressivos, pílulas,
terapias grupais ou não. Acrescente-se que não
têm problema de casa própria, morando suspensos
em ramadas confortáveis de árvores.
À sauna não tenho ido, pois este país
tropical me dispensa da assunção de naturalidade
finlandesa, provocando o “choque” de quem
sai do calor e mergulha na piscina, alegre por essa
espécie de coragem que já não tenho,
felizmente.
Eu me desgarro do paraíso onde vivo, agora sem
as necessidades de antes, e me perco em caminhadas de
todos os dias, sorvendo o ar matinal sadio e fresco,
“refrigério”, para Camões.
Nessas horas, carrego sonhos comigo, apostando que a
vida ainda me trará alegrias até não
esperadas. Aposto nesse futuro que sempre está
chegando para almas como a minha, esperançosas
criaturas crentes que a fortuna nunca lhes abandonará,
por isso jogando todas as fichas em números e
nomes: ponho todo o poder de minhas esperanças
na graça da mulher amada, aquela que entrará
pela casa, florindo cantos, iluminando pontos escuros,
deixando luz e cheiros por onde passar.
De volta da caminhada, outra vez me entrego à
carícia da água morna, que me envolve
como um abraço.
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