Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy

Racismo às avessas

José Carlos Sebe aponta algumas contradições que desnudam o racismo que existe na cabeça ( e atitutdes?) da maioria, independente de ser ou não afrodescendente.

Em janeiro de 1998, a Revista Raça publicava uma entrevista importante, com Joãzinho Trinta, sobre vários aspectos de sua atividade como carnavalesco. Lembrei-me disto ao refletir sobre frases célebres que ganharam a consciência nacional impactando-a. Algumas são decantadas e, expressão senso de oportunidade, espantam pela ironia, agudeza ou humor debochado. Há certas, porém, que merecem consideração dada a resistência conseguida através dos tempos, e, mais do que isto, pela inscrição em debates públicos relevantes.
Quem não se lembra de Joãozinho Trinta quando ele pontificou que “pobre gosta de luxo e quem gosta de miséria é intelectual”? O ano era 1975, o enredo do GRES Salgueiro versava sobre “As minas do Rei Salomão”. Nos tempos de ditadura política, exatamente em um momento em que o carnaval servia de propaganda para exibir um povo disciplinado, alegre, ordeiro, a frase famosa deu o que pensar. Aliás, a conjugação desta com outra menção feita por Pelé, em 1972, dizendo que “povo não sabe votar”, expressava a lógica autoritária que desprezava o povo e consagrava o regime militar como salvador da pátria. Juntas, as duas “pérolas” atualizavam o pressuposto romano do “pão e circo”, pois sem capacidade de escolha, ao povo seria dado o carnaval. E aos intelectuais o gozo da miséria alheia.
Sabe-se que Joãzinho Trinta se redimiu e a certeza disto veio em 1989 quando colocou – já no GRES Beija-Flor – o polêmico enredo “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia”. Pelé não. Continuou com frases célebres e celebradas (ainda que lhe faltasse celebro), sempre depreciativas do povo. Um bom exemplo disto pode ser marcado quando ainda no Santos Futebol Clube, em 1979, disparou “é difícil brasileiro de sucesso ser bem tratado no Brasil”. Incrível, logo ele que é dos mais bem amados cidadãos deste país. Mas como se diz, “Pelé é Pelé” e pode falar o que queira.
Pensando na relação negritude X classe social, tangenciando o eterno dilema do problema racial brasileiro nas visões dos personagens “populares”, voltei à aludida entrevista do carnavalesco onde aborda o assunto da seguinte forma: “a discriminação existe, não apenas contra o negro mas também contra o índio, o caboclo. Há o problema de classe. Um negro bem situado deixa de ser discriminado. Aqui, as relações sociais são dificultadas pela situação econômica”.
Outra vez, veio-me à mente um diálogo que tem acompanhado a carreira brilhante do nosso Ronaldinho, o fenômeno. Quando visitava a Cidade de Deus, no Rio, ainda no mês de junho último, foi perguntado ao rapper MV Bill sobre a declaração do ídolo do nosso futebol que se disse “branco” ao que o vivo performático, diplomaticamente, como que defendendo o jogador afirmou “O IBGE acostumou o brasileiro a responder o que quer. O preto não tem referência. Acaba achando que ser preto é ruim”.
Culturalmente, no momento em que se discute a validade das cotas universitárias para negros, índios e minorias historicamente discriminadas, vale lembrar a importância deste debate. Isto tudo torna-se até paradoxal quando se compara os critérios de acesso às tais cotas. Luta-se muito contra a auto definição, mas quando reponta fora dos esquemas de competição acadêmica não faltam pessoas que ironizam o critério e sua justiça.
Toda esta polêmica sobre cor e raça no Brasil, merece consideração na medida em que exibe duas verdades: uma dos critérios ideológicos e de classe social onde os privilegiados economicamente se sentem no direito de opinar sobre o direito dos demais; outra, dos pobres que quando investidos de dinheiro vêem obliquamente os que não conseguiram sucesso. Isto convida a retraçar a frase de Pelé, pois com certeza, “é difícil brasileiro sem sucesso ser bem tratado no Brasil”. Se branco, Ronaldinho (e similares raciais) não teriam lugar nas escolas superiores. Pode?


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