Quando saio de casa,
minha mulher não fica cuidando de seus fazeres,
costurando um botão desgarrado de sua camisa,
serzindo um orifício feito pelo Box, o cachorrinho
que até pre-feriu outra casa, certamente mais
atraente que a minha. Como intelec-tual, teria ocupações
mais nobres, embora menos singelas e se dedica-ria à
leitura de tese de uma orientan-da, em busca de seu
mestrado. Ela não faz nada disso, até
porque essa criatura não existe, o que me livra
de qualquer surpresa.
Nos mais de vinte anos em que transferi sonhos e esperanças,
vivi a magia de ter direito a acreditar em um novo tempo
que me envolvesse em limpeza, lealdade e, até,
fidelidade, que sempre me pareceu coisa de cachorro
e cartão de crédito de em-presa aérea.
Quem pensa é leal. A fidelidade fica por conta
de sentimen-tos automáticos, isto é, impróprios
para gente.
Falar verdade, andava encantado com o ordenado discurso
coerente que falava justamente de sonhos muito parecidos
com os meus desavi-sados planos pessoais e de pessoa
minimamente pública, como sou.As coisas se encaixavam
como macho e fêmea de marceneiro, sem necessi-dade
de prego, que embora aproxime as coisas, o faz por meio
de violência, penetrando estruturas fechadas,
vio-lando-as.
Nos bares e maioneses que nave-guei, andei discursando
sobre as excelências de escolhas felizes, cada
dia elogiando mais o rumo que me havia reservado como
quem tivesse encontrado a pedra filosofal e dela se
servido até para as coisas mais sim-ples e menores.
Em resumo, tinha direito a me presumir feliz e era feliz.
Dias atrás, poucos dias atrás, ao entrar
em minha casa bem arrumada, a casa de um homem entrado
em anos e impertinências que tem tudo bem disposto,
com tudo em seu lugar, como manda a neurose arrumadora
de “cada coisa em seu lugar e cada lugar com suas
coisas”.
Tudo fora do lugar, uma desarruma-ção
que me levou a supor ter entrado em outra casa, até
que me dei de frente com uma figura trocando sua roupa
austera por panos de palhaço, substituindo uma
postura de muitos anos por outra, cujos trajes me abri-ram
os olhos, para que visse bem a transfiguração.
Era um quadro de horror. Este quadro que anima jornais
e Tvs, rádios e mata o povo de ver-gonha. Na
televisão, onde estava, ele mudava de roupa,
finalmente assu-mindo sua profissão: era um palhaço,
para desonra dos palhaços de verda-de.
|