Por: Luiz Gonzaga Pinheiro - espesspei@uol.com.br

Traído

Quando saio de casa, minha mulher não fica cuidando de seus fazeres, costurando um botão desgarrado de sua camisa, serzindo um orifício feito pelo Box, o cachorrinho que até pre-feriu outra casa, certamente mais atraente que a minha. Como intelec-tual, teria ocupações mais nobres, embora menos singelas e se dedica-ria à leitura de tese de uma orientan-da, em busca de seu mestrado. Ela não faz nada disso, até porque essa criatura não existe, o que me livra de qualquer surpresa.
Nos mais de vinte anos em que transferi sonhos e esperanças, vivi a magia de ter direito a acreditar em um novo tempo que me envolvesse em limpeza, lealdade e, até, fidelidade, que sempre me pareceu coisa de cachorro e cartão de crédito de em-presa aérea. Quem pensa é leal. A fidelidade fica por conta de sentimen-tos automáticos, isto é, impróprios para gente.
Falar verdade, andava encantado com o ordenado discurso coerente que falava justamente de sonhos muito parecidos com os meus desavi-sados planos pessoais e de pessoa minimamente pública, como sou.As coisas se encaixavam como macho e fêmea de marceneiro, sem necessi-dade de prego, que embora aproxime as coisas, o faz por meio de violência, penetrando estruturas fechadas, vio-lando-as.
Nos bares e maioneses que nave-guei, andei discursando sobre as excelências de escolhas felizes, cada dia elogiando mais o rumo que me havia reservado como quem tivesse encontrado a pedra filosofal e dela se servido até para as coisas mais sim-ples e menores. Em resumo, tinha direito a me presumir feliz e era feliz.
Dias atrás, poucos dias atrás, ao entrar em minha casa bem arrumada, a casa de um homem entrado em anos e impertinências que tem tudo bem disposto, com tudo em seu lugar, como manda a neurose arrumadora de “cada coisa em seu lugar e cada lugar com suas coisas”.
Tudo fora do lugar, uma desarruma-ção que me levou a supor ter entrado em outra casa, até que me dei de frente com uma figura trocando sua roupa austera por panos de palhaço, substituindo uma postura de muitos anos por outra, cujos trajes me abri-ram os olhos, para que visse bem a transfiguração. Era um quadro de horror. Este quadro que anima jornais e Tvs, rádios e mata o povo de ver-gonha. Na televisão, onde estava, ele mudava de roupa, finalmente assu-mindo sua profissão: era um palhaço, para desonra dos palhaços de verda-de.



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