Por:
José Carlos Sebe Bom Meihy
Rompendo
com a ortodoxia que predominou em sua geração, Sebe
dialoga com Ortega y Gasset para entender problemas existenciais
que afligem a juventude. E aí, resgata a contribuição
do psiquiatra argentino Eduardo Kalina para entender o uso de pílulas
e drogas como solução.
o
filósofo espanhol Ortega y Gasset |
Às vezes fico meio constrangido e até
admito contradições em minhas preferências
por alguns pensadores. Sou de uma geração que
tem, quase invariavelmente, que saudar Marx, Lucaks, Gramsci.
Porém, mesmo sabendo-o conservador, sempre gostei do
filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883
– 1955). Seja pelos temas culturais – Cervantes,
Kant, Hegel, Unamuno, seja pelas brilhantes reflexões
a respeito da pintura de Velázques ou das aventuras
de Don Juan, ou devido às meditações
sobre sentimentos como o “amor” e o “ódio”
–, Ortega tem angulado minhas interpretações
sobre o mundo e os mortais.
Durante meus anos de pós-graduação “Rebelião
das massas” bem como os doze alentados volumes de sua
obra me foram livros constantes, guias para ver o mundo sob
a ótica de uma certa modernidade. Sobretudo, apreciava
suas reflexões atentas aos Estados Unidos, em particular
as contidas na expressão por ele inventada “a
era do mocinho satisfeito”. Pensando o advento da sociedade
de massas, considerando o “fenômeno do cheio”
e a falência das elites, para o brilhante representante
da “Generación Del 98”, os Estados Unidos
poderiam ser metaforizados pelo rapazola grande fisicamente,
algo tolo, sem consciência de si, mas poderoso porque
consumista desregrado e compatível com as normas de
um mundo regido por muitas máquinas e poucas idéias.
Esse autor veio-me à mente quando, dia destes, lia
algo sobre os efeitos de analgésicos na juventude atual.
Ou seja, sobre a incapacidade ou medo de sentir ou suportar
qualquer tipo de dor nos dias de hoje. E sobre a alegria de
viver sob os efeitos de uma euforia produzida por remédios.
Parece que perdemos a capacidade de solucionar nossos problemas
por nós mesmos. E para tudo existe um comprimido. Seja
para dor de dente, cabeça, falta de sono, depressão,
engordar ou emagrecer, há pílulas. Tudo indica
que a felicidade pode ser dosada de acordo com a relação
entre a capacidade de comprar e a diferença da felicidade
proposta pela mídia. Entre os jovens, o maior mal de
nossos dias se resume no tal “déficit de atenção”
que se manifestaria em uma síndrome nomeada pelo psiquiatra
kleiniano argentino Eduardo Kalina como “Síndrome
de Popeye” que se refere à prática de
consumo de um produto, no caso espinafre.
O uso da metáfora do velho marinheiro começou
em 1919 com o cartunista E.C. Segar (que assinava o nome usando
um charuto, “cigar”) que o colocou como personagem
de tiras que já faziam sucesso. O novo personagem,
um marinheiro caolho e com um pito no canto da boca, revitalizou
a série. Popeye estreou no cinema em 1933, em um desenho
animado ao lado de Betty Boop e gerou mais de 600 desenhos
animados que encantaram várias gerações
e foi, na mesma década, responsável pelo aumento
de 30% no consumo de espinafre nos Estados Unidos. As mães
americanas convenciam os filhos a comerem a verdura alegando
que assim eles ficariam fortes e invencíveis. O personagem
durou anos até que em 1980 os estúdios de Hanna
Barbera decidiram pôr fim às atividades daquele
herói. Paralelamente, na França outro personagem,
Astérix, também vítima de poções
milagrosas desponta com sucesso mundial.
Kalina recupera a trajetória de Popeye e de Astérix
para proceder estudos importantes sobre o comportamento de
jovens que precisam de algum “alimento especial”
para se “tornarem capazes”. A prática deste
costume midiatizado serviria para mostrar a necessidade de
um recurso externo, potente para dar força e coragem
para que os frágeis seres da rotina vencessem as provas
e desafios que os consagrariam super-heróis.
“Nutridos”, os tipos fictícios seriam capazes
de atos fenomenais, superariam dores, medos. O próprio
Kalina desdobra sua reflexão pensando nas vulnerabilidades
geradas pela cultura de massa como geradora de comportamentos
os quais ela condenará como viciados. Por certo, ao
se tornar linguagem social, o consumo de pílulas e
drogas pode ser visto como um código que merece ser
analisado em profundidade e na complexidade devida. Nossa
sociedade, a mesma que cria comprimidos contra males supostos
e fabrica doses capazes de felicidade, pode estar, ao mesmo
tempo, tentando combater os resultados por vias contrárias,
usando tais tiras como catarse para aliviar a dor de ser.
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Jornal Contato 2005 |