Basta
que um defensor se enrole com a bola para o locutor do rádio
ou da TV conclamar os adversários a marcar em cima. "Aperta,
que ele confessa!", brada ao microfone. Não é
só nas transmissões. Mesmo em mesas-redondas de respeito,
de vez em quando sai um comentário sobre o zagueiro vacilão:
"Se apertar, ele confessa".
Isso não é, ou não deveria ser, linguagem de
jornalista ou desportista. É dialeto de torturador. É
próprio de quem maneja a "coroa de Cristo", esmagando
o crânio do torturado, e o pau-de-arara. Tortura-se em busca
de confissão e informações. E para castigar.
Tortura e futebol se cruzaram na história. Os atletas da
seleção iraquiana eram chibateados a mando de Udai
Hussein, filho do tirano, a cada revés nos gramados. Hoje,
no Iraque, quem tortura são os soldados americanos.
À CIA, a central de inteligência dos EUA, não
passou despercebida a cena futebolística no governo militar
que mais torturou no Brasil: o do general Médici (1969-74),
que posava com radinho de pilha a ouvir os jogos, fazia embaixadinhas
e se dizia torcedor de Grêmio e Flamengo.
Em documento de janeiro de 1972, a agência analisava: "A
popularidade do regime de Médici tem subido desde que ele
assumiu (...). Em parte isso se deve (...) ao seu sucesso em se
associar à seleção vitoriosa na Copa do Mundo".
No ano anterior, em abril de 1971, os analistas da CIA observaram
que "os times de futebol [soviéticos] são populares
em toda parte [da América Latina]".
Quando as tropas nazistas ocupavam territórios da União
Soviética em 1942, jogadores ucranianos foram mortos depois
que seu time, formado por trabalhadores de uma padaria de Kiev,
derrotou um selecionado militar alemão. Três morreram
a bala. Um sob tortura.
Três décadas depois, o governo soviético proibiu
que sua seleção jogasse no Chile, onde o Estádio
Nacional se transformara em centro de tortura e morte de prisioneiros
do general Pinochet. No Rio, anos antes, a polícia surrou
estudantes no campo do Botafogo.
Também na ditadura, o ex-boleiro Didi Pedalada virou tira.
Em Porto Alegre, deu expediente na polícia política,
conhecido estabelecimento de tortura. Participou do seqüestro
de um casal de militantes uruguaios.
Em São Paulo, o policial militar Dulcídio Wanderley
Boschilla batia ponto no Doi-Codi, maior concentração
de torturadores do país. Do lado de fora, era árbitro
de futebol com fama de durão. Em 1975, 34 presos o incluíram
numa lista de funcionários que não "participaram
diretamente das sevícias", mas que tiveram "inequívoca
colaboração efetiva com a prática de torturas".
A despeito da barbárie, os presos políticos, na maioria,
torceram pela seleção em 70. Recusaram a apropriação
do futebol pelo ditador. Agora o jornalismo esportivo poderia, em
um gesto civilizador, abandonar o linguajar de sádicos e
criminosos.
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