Sinto cócegas nos dedos, vontade de me confessar
feliz, agora na ante-sala dos setenta anos.
Nunca me disse feliz. Quando muito, me declarei satisfeito.
Mesmo assim, com cautelas, por medo de, na esquina seguinte,
precisar mudar de credo e decisão. O certo é
que me acreditava provisoriamente bem, satisfeito. Nunca
pensei em viver um logo tempo em estado de satisfação.
Meu pai, quando perguntado, respondia que “por
enquanto, vou bem”, usando a misteriosa cautela
mineira, filha de uma mediterraneidade que, por falta
de mar, expõe uma tristeza congênita e
uma crença no jeito cauteloso do destino.
Resolvi ser feliz e me pelo de medo de me jogar no ridículo.
Um amigo, que antes foi meu aluno, tinha toda segurança
de se dizer descrente da felicidade: “Felicidade
é minha utopia. Sei que não chego e nem
a quero : se chegasse, como viveria sem utopia”,
dizia ele, muito seguro de si.
Concordo que viver sem quimeras, grandes sonhos, mesmo
uma utopia é reduzir o homem a nada. Tê-los
é movê-los para o irrealizável,
pelo menos como coisa duradoura.
Agora, neste momento de minha vidinha pequena e próxima
dos setenta anos, voltam as cócegas para me dizer
feliz, acreditando no capital que acumulei ao longo
da constituição de biblioteca, discoteca
onde só tocam os meus favoritos, uma modesta
coleção de obras de arte, além
de caminhadas que me avizinham do canto dos pássaros,
cores e formas das flores das estradinhas sensuais que
se torcem em meio à mata cheirosa e limpa, penso
que me posso enganar de modo gentil, mesmo que me desminta,
em seguida. Estou feliz, me digo sem receio, porque
me livro do verbo ser, com quem teria de me dizer que
sou feliz.
A tanto não vai meu otimismo que ri com dentição
natural, discute idéias, vive paixões
outonais, toma posição e se expõe,
arriscando em publicações perigosas, por
me desnudar a cada artigo.
Mário de Andrade me ajuda nesta empreitada, evitando
os exageros de corpo e de espírito: “Não
sonho sonhos vãos. A realidade mais esportiva
de vencer me ensina esse jeito viril de ir afastando
dos sonhos vesperais os impossíveis... de que
a vida é nua, friorentamente nua”.
Não me importa que me contradiga, pois Deus(?)
me livrou da praga da coerência.
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