Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Sebe recorda como a nossa música e nosso futebol são venerados pelos angolanos
e os estragos provocados pela Aids e pelas guerras naquele país irmão.

Em 1992, pela primeira vez fui a Luanda, capital de Angola. Não era minha estréia em solo africano, mas, foi a mais intensa e conseqüente experiência de minha vida de pesquisador fora do Brasil. Mais mesmo que a vivência nos Estados Unidos ou recentemente no México. Sei que afirmações tão peremptórias, como esta, são de alto risco e tendem ao provisório, pois, trabalho de campo é fatalmente surpreendente e outros despontam.
Confesso que Angola me fascinou. Sob todos os pontos de vista, fui tomado pelo ambiente que me cercava. O convite inicial havia partido do Arquivo Nacional Histórico de Angola (ANHA) e da UNESCO que então estavam interessados em propor alternativas ao modo tradicional de fazer a História Nacional.
A honra de ter sido escolhido para propor modelo metodológico alternativo se explicava por vários motivos combinados: trabalho com história oral que, no caso angolano/africano, é vital dado o papel da oralidade naquela cultura; por ser brasileiro e gozarmos de especialíssimo apreço naquele meio e pelo reconhecimento de meus trabalhos publicados em favor de uma história de grupos desfavorecidos nos parâmetros da cultura oficial.
Lembro-me em tempo de Copa do Mundo e mesmo havendo outros países africanos (o simpático time de Camarões e a Tunísia), o Brasil arrebatava torcedores que conheciam a escalação, os dilemas provocados pela firmeza de Felipão e a tabela dos jogos. E era só o Brasil entrar em campo que o país parava. Isso fascinava e comovia.
É lógico que notei outros pontos de aproximação entre nossos países, mas nenhum foi mais eloqüente do que a novela “O Clone”, de Glória Perez. Aliás, era quase cômico ver como a grande maioria das mulheres usava aqueles anéis propostos pela personagem Jade e até insistiam no bordão “inchalá”.
Repontava também a nossa música. Em verdade, era mesmo como se estivesse no Brasil, pois a popularidade de nossos intérpretes ajudava a anular a distância e a programação televisiva e radiofônica provavam continuidades. E como os angolanos se orgulhavam de dizer que o nosso samba era mesmo, e sem dúvidas, de raiz africana, originado do “semba”. Polêmicas à parte, autores como Martinho da Vila, Jorge Aragão, Jair Rodrigues têm status de figuras nacionais.
Em Luanda, às vezes, pensava que estava na Bahia, tal era o jeito maroto das pessoas, os requebros das moças, a comida e a forma de enfrentar a pobreza com certa resignação. As comidas faziam lembrar minha infância e não fosse o tempero na base do óleo de palma (aqui conhecido como dendê) eu teria voltado com alguns quilos a mais. Porém, como a qualquer pessoa que chega de fora, a situação de pobreza convoca indignação. Dos cerca de 11 milhões de habitantes, cerca de 82% vivem abaixo da linha de pobreza e 38% da população sobrevive com menos de dois dólares ao dia.
A agravar o quadro, é dramático o número de pessoas mutiladas em conseqüência de terríveis guerras: em 1975 contra os portugueses e depois, em 1992, quando as eleições gerais democráticas foram vencidas com pequena margem de votos pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Como a UNITA (União Nacional para a Independência total de Angola) contestou os resultados, reiniciou-se uma guerra que apenas viu seu fim em 2003 depois de um balanço de cerca de 25 mil mortos.
Mais difícil ainda é constatar as conseqüências da aids que assola o país que hoje tem cerca de 20% da população infectada. Não bastasse, resta ainda lamentar a presença da malária que lá atinge as marcas de endemia e é a primeira causa de mortalidade dentre doenças transmissíveis. Tal é a gravidade que as cifras chegam a assustar, pois de uma média de 286.000 casos médios anuais na década de 1970, houve a evolução para 864.000 na de 1980 e nos últimos cinco anos foram notificados mais de 679.000 casos médios anuais.
Voltarei a Angola este mês e preparo-me com emoção. Para ser sincero, volto a Angola como quem vai abraçar uma causa e reconhecer lá uma ancestralidade ainda mal vista pelos nossos historiadores.

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