Por: José Carlos Sebe Bom Meihy
Sebe
analisa com maestria sete músicas brasileiras de diferentes
gêneros musicais
que anunciavam, mas poucos entenderam, o êxodo de brasileiros
em busca de mítico Eldorado.
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Contemplar a MPB pensando nos brasileiros
que deixam o país implica admitir um caráter
profético às nossas canções.
Vejamos como poderíamos trançar seus enredos
na cultura popular.
A novela América, de Gloria Perez, tocou num problema
sensível para a auto-estima nacional: a ida de emigrantes
brasileiros que vão tentar a sorte nos Estados Unidos.
Ao reverter a tendência que mostrava o Brasil como
país que recebe gente, em novelas como Terra Nostra
(2000) e Esperança (2002), América colocou
dentro de nossas casas um drama espantoso. Mas de onde viria
o impulso quase inexplicável para tantos jovens deixarem
o Brasil? Atualmente, cerca de três milhões
de brasileiros vivem fora de nossas fronteiras e os Estados
Unidos capitalizam grande parte deste fluxo – cerca
da metade – que se constitui, na grande maioria, de
jovens entre 19 e 35 anos. Ainda que a movimentação
seja antiga, depois da década de 1980 e, em particular,
no começo dos anos de 1990 aumentou muito este impulso.
Um breve passeio pelo nosso repertório musical pode
sugerir fatores que atuam no inconsciente dos brasileiros
que tomam esse tipo de decisão.
Sete canções são importantes para se
estudar os efeitos desse trânsito migratório.
A primeira, "Tudo com você", de Lulu Santos,
despontou cedo, em 1982, juntamente com outra do mesmo autor,
“De repente Califórnia”, ambas do álbum
“Tempos modernos”. A segunda, "Nova York",
em 1989, no rastro do sucesso da dupla sertaneja Chystian
e Ralf. Depois veio “Manhatã”, de Caetano
Veloso, gravada em 1990, sem tanto apelo popular, apesar
da procedência prestigiosa. Um dos efeitos desta canção,
contudo, foi a resposta dada por Cazuza na música
com o mesmo nome. A quarta, "Uma Rua Chamada Brasil”,
foi enredo de uma Escola de Samba carioca – composta
por Arlindo Cruz, Maurição, Elmo Caetano e
Carlos Sena e interpretada por Jorginho do Império.
Na quinta, "Iracema Voou", Chico Buarque passeia
entre a nostalgia e a acidez. Por fim, a sétima,
é o forró de João Caetano e Geival
Lacerda, cantado por Trevisan: “Um matuto em Nova
York” de 2001. Combinadas, suas letras promovem o
questionamento do sentido profundo desse Brasil que se descobre
“fora de si”.
O rock de Lulu Santos abriu um caminho. A balada de Chrystian
e Ralf traduziu uma expectativa de encontrar nos Estados
Unidos um cenário idílico. A cunha Manhatã
de Caetano Veloso, mostra Nova York como locus ideal para
se viver modernamente. A letra de Cazuza retoma a apropriação
malandra marota/classe média de Nova York exaltando-a
como uma cidade liberal onde seria viável o uso de
drogas e a liberalidade pessoal. Sendo o samba-enredo um
épico popular, loa consagradora de uma experiência
que busca legitimidade, suas contradições
se explicam mais e melhor no quadro das indecisões
coletivas que afetam a todos: afinal, seria válido
e aceitável o esforço desses nossos americanos?
A contraposição implicada na letra de “Iracema
Voou” é clara. Não se trata de busca
de reconhecimento, não apela para apologias nostálgicas,
nem sequer dimensiona a possibilidade de sucesso. Solidão,
indiferença, inércia seriam atributos do estado
de espírito da nova Iracema. Viva, mas estéril,
sem comunicação direta com o mundo –
seja com o Ceará, seja com os Estados Unidos –,
resta-lhe manter a hipótese de estudar canto lírico.
O alegre forró fecha com graça esta saga que
começa com um processo de classes abastadas que viam
Nova York como lugar de turismo e acaba como espaço
de superação dos problemas de muitos brasileiros
pobres.
A reserva de memória sugerida pela seriação
destas baladas mostra que o fenômeno que agora nos
assusta, a imigração para os Estados Unidos,
já se anunciava pelas canções. Isto
vale como alerta para a suposição da música
popular como uma forma de diálogo inteligente com
a realidade. Resta buscar agora as canções
que tragam de volta tantos brasileiros que se iludem com
a troca de país.
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Jornal Contato 2005 |