Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Sebe revira arquivos pessoais e revive, folheando o seu álbum de família, os melhores momentos das tantas histórias compartilhadas com os entes mais próximos.

Tenho três filhos. Dois são casados e um está prestes a se tornar “homem sério”, por que será que dizem assim, afinal, não há solteiros sérios e todos os casados deixam de ser alegres? Bobagens à parte, vale dizer que sempre gostei muito dos antropologicamente chamados “rituais de passagens”, e, historiador, tratei de exercer minhas funções fazendo para cada noiva deles um álbum onde pudesse, de alguma forma, apresentar nossa família e inscrever cada personagem na vida parental de maneira a mostrar um projeto de vida com o qual a pretendente deve dialogar. Emoções à parte, trabalho hercúleo, garanto. Mas gratificante. Além de fotos da trajetória dos avós, reúno documentos como teste de gravidez, certidão de nascimento, boletins escolares, desenhos, a primeira conta bancária, multas de trânsito, enfim, tudo que consigo. Com os dois primeiros obedeci ao mesmo método: coleta de material, reprodução em xerox ou papel fotográfico. Agora, porém, o mundo eletrônico tanto avançou que me vejo perdido e mais, penalizado com uma cobrança fatal: papai quero tudo igual aos outros. Perplexo, me pergunto: mas, meu Deus, de que vale tanto progresso na reprodução de CDs, fotos digitais, cópias coloridas?
Ao buscar o farto material que guardei ao longo de anos vejo que nem mesmo tantas mudanças de casas e mesmo de cidades afetaram minha proposta de arquivista crônico. Tenho um material enorme. E emocionante. Mas são tantos os problemas para executar a tal tarefa que tenho como distrair as lágrimas que sempre rondam minhas lembranças ternas. E vou em frente vivendo histórias cheias de detalhes que se evaporaram, tornam-se nuvens de um céu claro e generoso.
Confesso que desta vez precisei de algumas pausas. Parei. Tive que me controlar, pois o tempo curto e as pressões pela realização de outras tarefas me assume de maneira a impor uma racionalidade medida. Desviei minhas leituras diárias, por exemplo, em busca de textos que falassem de noivado, noivas e noivos. Precisava entender melhor as práticas ritualísticas que ainda hoje presidem tais eventos. Perdido na sondagem, lembrei-me de um velho livro “A Cidade Antiga”, de Fustel de Coulanges, escrito nos idos do século XIX sobre a antiguidade clássica. Com voracidade achei um tesouro informativo. Como estou preparando-me para o “pedido” foi por ele que comecei e aprendi que, sob os preceitos gregos, o cerimonial tinha que começar na casa da noiva. Ali, o pai dela, em frente a testemunhas, dizia que dava a filha ao noivo e que ela não mais pertencia àquela família. Estava iniciado assim um processo sem volta. Por sua vez, vestida de branco e com uma guirlanda de flores de laranjeiras na cabeça, a noiva era conduzida até o novo lar. Na nova casa, a noiva seria recebida pela família do rapaz, mas de modo cerimonioso, pois supunha-se que o noivo deveria mostrar um sacrifício para marcar o rompimento dos pais dela. Então montava-se uma encenação onde, teatralmente, o jovem representava o rapto da noiva e para tanto deveria entrar com ela no colo em sua nova casa. A fim de que não houvesse azar na união, outra prática antiga repontava: o moço deveria entrar com o pé direito e não pisar na soleira da casa. Pensam que parou por aí? Ledo engano, pois dentro do novo lar, os nubentes deveriam comer uma papa chamada panis farreus, especialmente preparada para a ocasião. Pois é, foi daí que surgiu a tradição do bolo de noiva.
Fazendo um inventário disto tudo, concluo algumas coisas óbvias e outras nem tanto: as tradições são mais resistentes do que imaginamos, os cerimoniais de matrimônio atravessam culturas, emocionam e impõem valores que nos obrigam a respeitar o passado e propor futuros. O que não é tão evidente é o desconhecimento destas raízes que, afinal, governam nossas vidas com pompas e circunstâncias.

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