CONTATO - Onde você nasceu?
Ito
- Nasci em 15 de julho de 1961 num lugar maravilhoso: Largo do Chafariz. Dizem que nada acontece por acaso. Você tem que estar no lugar certo, na hora certa. Isso já foi o meu acontecimento. Nasci ali no Largo do Chafariz, a menos de mil metros do mercado municipal e da barganha.

CONTATO - Imortalizada pela música de Renato Teixeira
Ito
- Que não conheço pessoalmente, mas sou admirador, fã nº 1 dele.

CONTATO - Mas e sua infância?
Ito
- Na frente da casa do meu pai tinha a oficina do Pechico, uma oficina de usinagem. Era maravilhoso tudo que ali acontecia. Logo do outro lado da praça Chafariz tinha uma carvoaria, e do lado da carvoaria tinha uma fabrica de ladrilhos hidráulicos, do Raimundo. Eu não precisava estar em um ateliê ou em algum outro lugar para ver arte 24 horas por dia. E [havia] o lado lúdico da praça que nos proporcionava jogo de bola, de peão.

CONTATO - O que era a vida artística nesses ambientes de trabalho?
Ito
- Na verdade não tinha vida artística. Aquilo ali era um acúmulo para o cérebro que prospera até hoje com meus 44 anos de idade. Na verdade, tudo que a gente vê na infância acumula no cérebro. A gente vai amadurecendo e você retrata isso no futuro. E você vai falando: nossa eu tive essa oportunidade!

CONTATO - Quais eram essas imagens?
Ito
- Tinha uma fábrica de arroz no quarteirão onde morava que depois virou uma fábrica de algodão. Eu já estava ligado na indústria. Saía para pegar os rolamentos na oficina do Pechico para fazer os carrinhos de rolimã com a molecada da rua. Na fábrica de ladrilho, eu via os desenhos que o Raimundo fazia. Só de curiosidade, para ver a prensa hidráulica imprimindo os ladrilhos.

CONTATO - E na fábrica de algodão?
Ito
- Na imagem da fabrica de algodão e de arroz todo fio de alta tensão era coberto com algodão. Era todo branco. Parecia que nevava. (risos)

CONTATO - Que outra imagem ficou?
Ito
- O pessoal não podia jogar bola porque o Raimundo colocava os ladrilhos coloridos dele para secar ao sol, na calçada do Chafariz. O ladrilho dele era feito de cimento e com pigmentos de pó xadrez. E logo na esquina tinha um sapateiro. O barulho daquela maquineta polindo sapato, fazendo meia sola, era coisa que mexia muito comigo.


“O barulho daquela maquineta polindo sapato, fazendo meia sola, era coisa que mexia muito comigo”


CONTATO - Você morou no Chafariz até quando?
Ito
– Nasci e fui criado ali até os 27 anos. Meu pai era comerciante no mercado municipal. Por isso, existe essa ligação entre minha casa e o mercado. Eu convivia com as pessoas que vendiam frutas, legumes, verduras. Essa foi a minha vida. Do mesmo jeito que eu sou hoje, eu saía naquela época dando tchau para os agricultores.

CONTATO - Qual foi a primeira manifestação artística concreta que materializou?
Ito
- Por incrível que pareça foi num carnaval de moleque aos 12, 13 anos. Eu peguei os metais dos retrovisores de uma Kombi e fiz um batedor. Então, eu ia à escola de samba e batia aquele “troço”. Taubaté estava crescendo nessa época, tinha muitas construções. Então, eu, muito bicudo, vi que sobrava resto de azulejo. E as pessoas falavam: “faz um castelo aí”. Então, eu ia lá com o pedreiro e fazia os castelos e brincava.

CONTATO - Mas e essa peça que você fez na época do carnaval?
Ito
- Sempre gostei de fazer batuques. Abria lata de ameixa preta e colocava saquinho plástico nela, amarrava com borracha e já fazia instrumentos musicais. Quando a gente tem uma dificuldade para adquirir as coisas, você acaba criando. E a gente acabava criando os brinquedos. A gente dobrava num bambu com aro e saía empurrando um aro de bicicleta na rua. Nosso tempo é um tempo lúdico. Não sabia que o calculo matemático era tão importante na construção do papa-vento ou de uma pipa.

CONTATO - Como você conciliou processamento de dados com essa veia artística?
Ito
- Estudei no Lopes Chaves, depois fui para o Estadão, onde conheci o Ivan Cornélio que também estudava na Fêgo Camargo. E o Ivan me apresentou os artistas que conhecia como a Vilma Natalino, Justino, José Demetrio, a Carolina. As conversas com esses artistas influenciaram muito na minha formação. Terminei o processamento de dados arrastado e entrei na Arquitetura, sem ter revelado ainda meu lado artístico.

CONTATO - O que te fez mudar? onde se deu a ruptura?
Ito
- Não sabia o que fazer da vida. E a arquitetura foi o grande lance da minha vida. Entrei para a militância política. Fui presidente do Diretório Acadêmico. Na década de 70, a Arquitetura tinha expulsado os professores da escola. O chefe do Departamento de Finanças era o arquiteto Milton de Freitas Chagas. A menina dos olhos dele era a Arquitetura. Eu acho que ele viu em mim uma potencial liderança para lutar pelos ideais. E foi ai que ele que me introduziu junto a professores como Milton Massafume que, na quinta-feira, dia 24, recebeu o Prêmio Internacional da Bienal. Conheci Rubens Matuck que já era uma celebridade na arte. Eu achava que sabia tudo. Eu era ingênuo.

CONTATO - E como começou a trabalhar com madeira?
Ito
- Comecei a comprar as ferramentas na barganha de Taubaté. Só que eu não sabia o valor histórico dessas ferramentas. Aí, o Rubens me orientou e falou: “Ito o seu caso é um caso excepcional porque estas ferramentas não existem mais e ninguém trabalha mais com esse tipo de ferramenta”.

CONTATO - Que tipo de ferramenta?
Ito
- O inchó, um tipo de uma enxada com corte, uma das ferramentas mais difíceis para uma pessoa manusear. Para se fazer uma canoa é preciso o inchó. Para fazer uma porta precisa-se do inchó, mas hoje praticamente ninguém sabe mais usar. Eu dominava aquilo. Era a mesma coisa que descascar uma laranja. Eu já tinha uma coleção com 50 inchós. Rubens falou que eu precisava ir para São Paulo, conhecer lugares e pessoas legais, a arqueologia industrial. E eu falei que queria ser urbanista, revolucionário.

CONTATO - Você já produzia algumas peças naquela época?
Ito
- Produzia alguns móveis (risos) que ficaram para minha família. Maria Helena Goffi deve ter uns móveis que devem ser de estimação porque nunca mais vou fazer móveis na minha vida. (risos)

CONTATO - Voltando o assunto...
Ito
- Então, quando eu conheci o Rubens e teve a retomada da escola Arquitetura, nós começamos a dominar o movimento estudantil na universidade inteira. Eu não estava muito ligado ainda nessa parte artística, não estava maduro (risos). Estava na época de conhecer tudo, de conhecer Mário Schemberg [físico e mecenas das artes], em São Paulo, Azis Abi-Saber [professor da USP e respeitado ambientalista].

CONTATO - E quem fazia esta ponte com Schemberg e Abi-Saber?
Ito
- Ninguém. Eu ia atrás com a cara e a coragem. Chegava e falava para ele: eu sou o Ito, sou lá de Taubaté.

CONTATO - E você foi atrás dele por causa de quê? Política?
Ito
- Por causa da política, por gostar de escutar eles falarem as coisas. Inclusive Abi-Saber na época era diretor do Condephat. Quando eu conheci o Rubens Matuck ele disse que eu tinha que conhecer Aldemir Martins, um ícone hoje. Quando o conheci ele falou: “olha, você está entrando no meu ateliê e já é como se fosse um filho para mim. Eu trato você muito diferente dos outros artistas que vem aqui porque você tem a mesma realidade da minha vida. Você é um cara que vai batalhar por uma vida que está começando e que é difícil”.

CONTATO – Por que largou a arquitetura?
Ito
- A arquitetura está diretamente ligada à vida das pessoas. É um compromisso muito sério, não que eu não seja sério no trabalho, mas para você edificar uma obra ou fazer uma intervenção é um processo muito sério. E como já estava bem maduro, falava que eu não era para esse tipo de coisa. Tenho consciência do que estou fazendo e [que] vou caminhar pela minha carreira artística. Graças a Deus deu certo e eu não tenho o que reclamar disso.

CONTATO - Mas, onde, quando ocorreu a ruptura?
Ito
- Quando eu saí para o Japão (risos) em 1992

CONTATO - Antes de falar no Japão, como foi sua tese na FAU?
Ito
- Antes de ir para minha tese, o Rubens me cooptava pelo lado intelectual. E numa dessas ocasiões, fui indicado pelo Rubens Matuck para ir apresentar meu trabalho de madeira no Maksoud Plaza, num evento para 3 mil pessoas do mundo inteiro. Só que eu fui falar sobre os artesãos, caiçaras e caipiras que trabalhavam com essa madeira. E da relação que eu tinha com a barganha de Taubaté onde eu adquirira um arsenal de ferramentas que eu não sabia do valor pela própria ignorância que eu tinha na época de que aquilo ali era um valor vivo que tinha na minha mão. Fernando Gabeira me conheceu nesse evento e fez uma enorme matéria na Folha de São Paulo. Comecei a sair do anonimato.


“Fernando Gabeira me conheceu e fez uma enorme matéria na Folha de São Paulo. Comecei a sair do anonimato”


CONTATO - Você ia à feira só para comprar essas ferramentas?
Ito
- Sim. Comprava formão, incho. O Guilherme comprava tudo quanto era tipo de ferramenta que ligava madeira. Eu usava essas ferramentas para fazer meus trabalhos de madeira, mas isso sem nunca deixar de participar do movimento político.

CONTATO - Como você conseguiu essa viagem para o Japão?
Ito
- Fui para trabalhar em uma incorporadora de madeira. Fui com a cara e a coragem. Com a vivência de rua que tive no Chafariz, você consegue viver em qualquer lugar. Eu não falava nada de japonês. Lá conheci os maiores escultores do Japão. Fui parar lá porque estávamos em uma crise por causa do Collor. Caí de pára-quedas lá. Minha mala de viagem não tinha roupa. Só tinha ferramentas.


“Com a vivência de rua que tive no Chafariz, você consegue viver em qualquer lugar. Eu não falava nada de japonês”


CONTATO - Você sabia o que queria no Japão?
Ito
- Sabia. Eu queria conhecer o talento japonês com as madeiras. Isso acontecia ao lado de Tóquio, em uma cidade há 40 km da capital japonesa. Ali conheci alguns escultores e designers de móveis japoneses.

CONTATO - Ganhou dinheiro?
Ito
- Eu, na verdade, vivi. Conheci a China inteira praticamente. E mais de 50 países.

CONTATO - Você saiu da imobiliária para as esculturas. Como foi isso?
Ito
- Esse foi o grande lance. Estava no Peru e não agüentava mais cobrança de clientes. E decidi entrar de cabeça naquilo que sempre amei: vou fazer escultura. Isso foi em 1997.


“Não agüentava mais cobrança de clientes. E decidi entrar de cabeça naquilo que sempre amei: vou fazer escultura”


CONTATO - Qual foi sua grande sorte?
Ito
- Não ter saído de Taubaté porque meus filhos vivem aqui, minha esposa trabalha aqui. Você não pode renegar a região de onde você veio. Defendo profundamente minha região. Sou o Ito de Taubaté.

CONTATO - Quando você desponta como escultor?
Ito
- Quando conheci o redator da Veja no Japão por ocasião do lançamento de uma revista pela JAL (Japan Air Line) e eles queriam fazer uma matéria comigo. As coisas vão acontecendo, né? E quando eu cheguei no Brasil, o Afonso foi fazer a revista da Leo Madeiras. A revista foi distribuída para o Brasil inteiro e foi cair no departamento de marketing do Center Vale, shopping de São José dos Campos. E eu sempre fui um cara muito arredio. Me falaram que o pessoal (do shopping) estava querendo me ver por outro lado, fazer uma exposição ali. Mas eu não queria fazer exposição em lugar nenhum.

CONTATO - Foi bem recebido em São José?
Ito
- Nem imagina. Eu não esperava que a cidade de São José fosse ao Center Vale e nem que o shopping me desse todo o apoio que me deram. Eu mesmo não estava acreditando. (risos). Foi em 1999 e eu já tinha um acervo grande para uma exposição. Eu era tido como um cara louco. No final, o pessoal ficou extasiado. Eu pensava: “será que isso tudo esta acontecendo na minha vida ou será uma fantasia?” E o pessoal falava: “Ito, seu potencial é enorme, suas obras são maravilhosas, você vai pra arrebentar”. E foi o que aconteceu. A exposição foi um arrebento.


“O pessoal falava: “Ito, seu potencial é enorme, suas obras são maravilhosas, você vai pra arrebentar”. E foi o que aconteceu”


CONTATO - O prefeito Bernardo Ortiz deu alguma força?
Ito
- Deu. Sempre me deu força.

CONTATO - Então, por que você nunca fez uma exposição em Taubaté?
Ito
- Não. Nunca fiz. Não vou fazer exposição em Taubaté porque santo de casa não faz milagre. Mas vou fazer exposição só no Chafariz. O Ortiz comprou várias peças e colocou lá no museu do parque Itaim.

“Não vou fazer exposição em Taubaté porque santo de casa não faz milagre. Mas vou fazer exposição só no Chafariz”

CONTATO - Como o Fernando Ito, um sucesso nacional, ainda tem vínculos com o Largo do Chafariz?
Ito
- Dia 25 de dezembro, por exemplo, estarei lá doando a cesta básica. Eu sou o numero 1, já fico preocupado com o que esta faltando. Essa relação é com os amigos do Chafariz, das pessoas que nasceram comigo. Eu trato todos nivelados, todos são iguais.

CONTATO - Você é favor da retirada do chafariz da praça?
Ito
- Claro que não porque o chafariz é até pequeno para o que tem na praça. Teria que ter um bem maior para que andarilhos, cachorros e, principalmente, crianças pudessem usá-lo. Sem isso, não haveria razão para existir.

CONTATO - E o futuro?
Ito
- Na minha vida, os fatos são todos empíricos, nunca os procurei. Eles acontecem.

CONTATO - E o aprendizado?
Ito
- O mundo não é conhecido pelas alegrias mas pelos fatos consumados. A vida é contada pelos dias tristes, como a morte do professor Juju, contado nos dedos, mais do que pela alegria. Sempre estive nas ruas. A escola (formal) só ensina a ler e escrever. A rua ensina a olhar, ver e enxergar.



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