Gol
de chapa, bicicleta, cama-de-gato, carrinho, bicada, chaleira.
Sabe, assistir jogo de futebol hoje virou desafio lingüístico.
Coisa de iniciados, códigos pouco decifráveis
fora de círculos específicos, os discursos futebolísticos
excluem os “de fora” e impõem uma iniciação
que deve vir da infância. Assim até se compreende
a rejeição que certas pessoas e grupos sentem
em frente da televisão vendo uma simples partida.
E então penso em outro jogo, sutilmente intelectual,
promovido pelo futebol e reconheço na apropriação
da influência inglesa os avanços de um nacionalismo
ufanista que abrasileira o futebol promovendo, inclusive,
uma organização social onde questões
de gêneros despontam. E, em termos de linguagem, como
tudo mudou! Não que antes fosse menos hermético,
ou mais popular. Não. Mas a passagem do vocabulário
britânico para a gíria específica do “futebolês”
não deixa de ser uma aula de cultura. Vejamos.
Dizem os historiadores deste esporte no Brasil que tudo começou
com um paulistano do Brás, Charles Miller, que indo,
com nove anos, estudar na Inglaterra de seus antepassados,
em 1894, voltou para o Brasil trazendo duas bolas de futebol.
Membro da elite paulistana, transmitiu esta prática
elegante aos pares.
Devemos lembrar que o futebol diferenciou-se do antiqüíssimo
“jogo de bola”, comum entre gregos, japoneses,
índios americanos. A mudança decorreu do estabelecimento
de regras que se definiram no final do século XIX inglês.
Em terras britânicas, em 1885, foi criada a International
Board, cujo objetivo principal era controlar as regras e difundir
o sport como manifestação moderna. Foi assim
que em 1897 a equipe inglesa de futebol, o Corinthians, fez
uma excursão pela Europa continental encantando a todos.
Em 1888, sempre com a liderança inglesa, foi fundada
a Football League que propunha campeonatos internacionais.
Pode-se dizer que o primeiro jogo organizado de futebol no
Brasil aconteceu em 15 de abril de 1895 entre os funcionários,
ingleses, de empresas britânicas (Companhia de Gás
X Cia. Ferroviária São Paulo Railway) na capital
paulista. Contudo, o primeiro time a se formar no Brasil foi
o São Paulo Athletic, criado aos 13 de maio de 1888.
Há uma fatalidade nisto, pois sendo fundado exatamente
no dia da Abolição da Escravatura, não
era permitido aos negros praticar futebol que deveria ser
exclusivo da elite branca. E assim, como manifestação
fina, de classe, abria-se no Brasil o mundo do football com
alguns teams, conhecidos também como scratches. Seus
praticantes, sportmen, eram chamados de players e a torcida
era fan.
Diz a lenda que o Brasil logo despontou com potencial da bola
e em 1938 já participávamos de campeonatos mundiais
como a Copa do Mundo celebrada em Bordeaux, na França,
onde nosso melhor crack, Leônidas da Silva apontado
pelos speackers (comentaristas) e footballers (jogadores)
como Player Phenomenal. De forma decisiva, íamos desenvolvendo
técnicas sempre apoiadas na importação
de modelos.
Assim, era do estrangeiro que vinham os referees (juizes)
e linesmen (bandeirinhas). Ao mesmo tempo em que a elite mantinha
um quadro equilibrado com o que acontecia no mundo elegante
dos esportes internacionais, em nível popular, a empolgação
era ainda maior, mas não fiel aos padrões lingüísticos
originais.
No Brasil, em cidades ou mesmo nas várzeas e recônditos
campos, acontecia uma adesão crescente ao sport que
ganhava da língua inglesa um “e” e um “s”
e assim virava “esporte”. O shoot por sua vez,
logo virou “shootar” e daí para o verbo
aportuguesado como chutar foi um lance rápido. E tudo
se transformava: goal virou gol, match se transformou em jogo,
scrach em time. Alguns termos lutaram e até resistiram
como o corner que mesmo acentuado como “córner”
ainda não se acostumou ser escanteio.
Creio que estas apropriações dão a medida
de outras mudanças que também não são
visíveis sem alguma sabedoria. Hoje exportamos jogadores
e até reclamamos diferenças entre o dito “futebol
arte” – nosso e o “futebol técnica
– dos europeus. De uma forma nacionalista exagerada,
tudo indica que invertemos os pólos e achamos que o
futebol é coisa nossa. Aliás, acontece o mesmo
com o samba, feijoada, capoeira. De maneira aparentemente
inocente, nos apossamos da origem de tudo e até acreditamos
que “deus era brasileiro”.
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