Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Se esse artigo tivesse sido escrito depois da conquista do tri-campeonato mundial pelo São Paulo FC, com certeza diria que os ingleses do Liverpool receberam uma grande lição do esporte bretão made in Brazil.

Gol de chapa, bicicleta, cama-de-gato, carrinho, bicada, chaleira. Sabe, assistir jogo de futebol hoje virou desafio lingüístico. Coisa de iniciados, códigos pouco decifráveis fora de círculos específicos, os discursos futebolísticos excluem os “de fora” e impõem uma iniciação que deve vir da infância. Assim até se compreende a rejeição que certas pessoas e grupos sentem em frente da televisão vendo uma simples partida.
E então penso em outro jogo, sutilmente intelectual, promovido pelo futebol e reconheço na apropriação da influência inglesa os avanços de um nacionalismo ufanista que abrasileira o futebol promovendo, inclusive, uma organização social onde questões de gêneros despontam. E, em termos de linguagem, como tudo mudou! Não que antes fosse menos hermético, ou mais popular. Não. Mas a passagem do vocabulário britânico para a gíria específica do “futebolês” não deixa de ser uma aula de cultura. Vejamos.
Dizem os historiadores deste esporte no Brasil que tudo começou com um paulistano do Brás, Charles Miller, que indo, com nove anos, estudar na Inglaterra de seus antepassados, em 1894, voltou para o Brasil trazendo duas bolas de futebol. Membro da elite paulistana, transmitiu esta prática elegante aos pares.
Devemos lembrar que o futebol diferenciou-se do antiqüíssimo “jogo de bola”, comum entre gregos, japoneses, índios americanos. A mudança decorreu do estabelecimento de regras que se definiram no final do século XIX inglês. Em terras britânicas, em 1885, foi criada a International Board, cujo objetivo principal era controlar as regras e difundir o sport como manifestação moderna. Foi assim que em 1897 a equipe inglesa de futebol, o Corinthians, fez uma excursão pela Europa continental encantando a todos. Em 1888, sempre com a liderança inglesa, foi fundada a Football League que propunha campeonatos internacionais.
Pode-se dizer que o primeiro jogo organizado de futebol no Brasil aconteceu em 15 de abril de 1895 entre os funcionários, ingleses, de empresas britânicas (Companhia de Gás X Cia. Ferroviária São Paulo Railway) na capital paulista. Contudo, o primeiro time a se formar no Brasil foi o São Paulo Athletic, criado aos 13 de maio de 1888. Há uma fatalidade nisto, pois sendo fundado exatamente no dia da Abolição da Escravatura, não era permitido aos negros praticar futebol que deveria ser exclusivo da elite branca. E assim, como manifestação fina, de classe, abria-se no Brasil o mundo do football com alguns teams, conhecidos também como scratches. Seus praticantes, sportmen, eram chamados de players e a torcida era fan.
Diz a lenda que o Brasil logo despontou com potencial da bola e em 1938 já participávamos de campeonatos mundiais como a Copa do Mundo celebrada em Bordeaux, na França, onde nosso melhor crack, Leônidas da Silva apontado pelos speackers (comentaristas) e footballers (jogadores) como Player Phenomenal. De forma decisiva, íamos desenvolvendo técnicas sempre apoiadas na importação de modelos.
Assim, era do estrangeiro que vinham os referees (juizes) e linesmen (bandeirinhas). Ao mesmo tempo em que a elite mantinha um quadro equilibrado com o que acontecia no mundo elegante dos esportes internacionais, em nível popular, a empolgação era ainda maior, mas não fiel aos padrões lingüísticos originais.
No Brasil, em cidades ou mesmo nas várzeas e recônditos campos, acontecia uma adesão crescente ao sport que ganhava da língua inglesa um “e” e um “s” e assim virava “esporte”. O shoot por sua vez, logo virou “shootar” e daí para o verbo aportuguesado como chutar foi um lance rápido. E tudo se transformava: goal virou gol, match se transformou em jogo, scrach em time. Alguns termos lutaram e até resistiram como o corner que mesmo acentuado como “córner” ainda não se acostumou ser escanteio.
Creio que estas apropriações dão a medida de outras mudanças que também não são visíveis sem alguma sabedoria. Hoje exportamos jogadores e até reclamamos diferenças entre o dito “futebol arte” – nosso e o “futebol técnica – dos europeus. De uma forma nacionalista exagerada, tudo indica que invertemos os pólos e achamos que o futebol é coisa nossa. Aliás, acontece o mesmo com o samba, feijoada, capoeira. De maneira aparentemente inocente, nos apossamos da origem de tudo e até acreditamos que “deus era brasileiro”.

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