Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Mestre Sebe mostra como a nossas escolas de samba se apropriaram da liturgia e símbolos religiosos e como o Estado tem se apropriado dos sambas-enredo.

Há duas influências vitais no carnaval de rua que se vive no Rio de Janeiro: uma religiosa e outra cívica. A primeira, de feições sagradas é antiqüíssima e remonta aos rituais da colheita. Esta ligação com a abundância, por exemplo, gerou a chamada terça-feira gorda e também explica o sensualismo inerente à fertilidade. A nudez e a aparente permissividade tão presente no carnaval se justificam por esta via.
No terreno do religioso, a festa pagã teria sido apropriada para controlar a institucionalização do cristianismo, passando inclusive a integrar o seu calendário. As “cinzas” provam a condenação pretendida pelos padres católicos que demonizaram a festividade. Ainda que ao longo dos séculos a cúpula da igreja tenha se esforçado para conter os excessos das manifestações que se instalaram definitivamente no inconsciente popular, não conseguiu anular o diálogo entre o sagrado e o profano. As procissões, por exemplo, serviram de base às futuras Escolas de Samba que, no lugar dos santos, se valeram dos destaques, substituíram as bandas musicais pelas baterias e as irmandades religiosas pelas alas. É muito fácil notar a reprodução das procissões barrocas e inclusive o fascínio pelo brilho e pelo luxo nos desfiles que acontecem na Marquês de Sapucaí.
Outra influência, cívica, mostra a importância da celebração cíclica que recondiciona a opinião pública e lhe propõe uma memória baseada na repetição das estruturas e atualização dos temas encenados.
O estado Varguista, espertamente, notou que no potencial energético do tríduo carnavalesco estaria uma forma de comunicação com as massas e que isto poderia ser capitalizado de maneira a resultar proventos “patrioteiros” sob as bênçãos dos céus. Assim, em 1935 decretou-se que todas as Escolas deveriam apresentar um enredo de alguma forma alusivo ao Brasil. Esta manifestação nacionalista, aliás, provocou o exagero de se pensar o carnaval como festa exclusiva brasileira. De toda forma, desde então, direta ou indiretamente, temas relativos à nossa história, cultura ou folclore têm alimentado a imaginação de carnavalescos que já “abrasileiraram” o Rei Salomão, soberanos franceses, as mitologias grega e romana.
O carnaval carioca deste ano, sobremaneira, mais do que os outros, expressa algumas tensões resultantes desta longa e ambígua genética festiva. A simbiótica mescla cívico/religiosa exibe-se, por exemplo, na quantidade de estados que se apresentam na colagem do mapa festivo que se reintegra no Sambódromo: Amazonas, Espírito Santo, Santa Catarina, Minas Gerais diretamente, e Bahia, Pernambuco, São Paulo e Ceará repontam diluídos. Esta colagem fantástica torna-se ainda mais estranha por ocultar em sua aparente espontaneidade um mecanismo de memória ou “pecado original” que conspira contra o aspecto dionisíaco ou subversivo da festa.
Funcionando como pólo de encontro entre a semente religiosa e cívica, a arquitradicional e popular Estação Primeira de Mangueira, vai celebrar, na Avenida, a retificação do curso do Rio São Francisco (um dos maiores projetos do atual governo), reproduzindo a devoção popular que clama chuva e bênçãos dos céus. Um carro alegórico com um ostensório enorme foi projetado para um dos carros que exaltará a “Folia de Reis”, festa típica dos ribeirinhos. Nesta cena haverá um folião vestido de bispo e abençoando o povo pobre que reza “o samba é minha oração”.
Incenso e cruzes não faltarão para dar realismo a uma cena que promete incendiar o longo debate entre a Santa Madre Igreja e o pessoal do samba. E no contágio da festa, o cívico abraça o religioso lembrando aos inocentes expectadores que “o sertanejo sonhou/banhou de fé o coração/e transformou em verde-e-rosa/a esperança do sertão”. Junto, canta-se também a unidade nacional, a produção de vinho e frutas e o governo.
Abafando a picardia inerente às manifestações patrocinadas pelo Estado, o bispo celebrado não tem nada a ver com dom Luiz Flávio Cappio, o religioso que se manifestou contra a transposição do rio São Francisco. Pelo contrário, ele é esquecido em troca, oficializa-se a união entre o sacro/conservador e o cívico/estatal.
Pena, né? Pena que a minha Escola do coração tenha se prestado a isto. Pena que o atual governo tenha por meio do ministro Ciro Gomes se dado ao trabalho de pedir dinheiro para financiar o enredo aludido. Pena que nós tenhamos que ver tudo isto e cantar “a carranca da Mangueira”.


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