Há
duas influências vitais no carnaval de rua que se vive
no Rio de Janeiro: uma religiosa e outra cívica. A
primeira, de feições sagradas é antiqüíssima
e remonta aos rituais da colheita. Esta ligação
com a abundância, por exemplo, gerou a chamada terça-feira
gorda e também explica o sensualismo inerente à
fertilidade. A nudez e a aparente permissividade tão
presente no carnaval se justificam por esta via.
No terreno do religioso, a festa pagã teria sido apropriada
para controlar a institucionalização do cristianismo,
passando inclusive a integrar o seu calendário. As
“cinzas” provam a condenação pretendida
pelos padres católicos que demonizaram a festividade.
Ainda que ao longo dos séculos a cúpula da igreja
tenha se esforçado para conter os excessos das manifestações
que se instalaram definitivamente no inconsciente popular,
não conseguiu anular o diálogo entre o sagrado
e o profano. As procissões, por exemplo, serviram de
base às futuras Escolas de Samba que, no lugar dos
santos, se valeram dos destaques, substituíram as bandas
musicais pelas baterias e as irmandades religiosas pelas alas.
É muito fácil notar a reprodução
das procissões barrocas e inclusive o fascínio
pelo brilho e pelo luxo nos desfiles que acontecem na Marquês
de Sapucaí.
Outra influência, cívica, mostra a importância
da celebração cíclica que recondiciona
a opinião pública e lhe propõe uma memória
baseada na repetição das estruturas e atualização
dos temas encenados.
O estado Varguista, espertamente, notou que no potencial energético
do tríduo carnavalesco estaria uma forma de comunicação
com as massas e que isto poderia ser capitalizado de maneira
a resultar proventos “patrioteiros” sob as bênçãos
dos céus. Assim, em 1935 decretou-se que todas as Escolas
deveriam apresentar um enredo de alguma forma alusivo ao Brasil.
Esta manifestação nacionalista, aliás,
provocou o exagero de se pensar o carnaval como festa exclusiva
brasileira. De toda forma, desde então, direta ou indiretamente,
temas relativos à nossa história, cultura ou
folclore têm alimentado a imaginação de
carnavalescos que já “abrasileiraram” o
Rei Salomão, soberanos franceses, as mitologias grega
e romana.
O carnaval carioca deste ano, sobremaneira, mais do que os
outros, expressa algumas tensões resultantes desta
longa e ambígua genética festiva. A simbiótica
mescla cívico/religiosa exibe-se, por exemplo, na quantidade
de estados que se apresentam na colagem do mapa festivo que
se reintegra no Sambódromo: Amazonas, Espírito
Santo, Santa Catarina, Minas Gerais diretamente, e Bahia,
Pernambuco, São Paulo e Ceará repontam diluídos.
Esta colagem fantástica torna-se ainda mais estranha
por ocultar em sua aparente espontaneidade um mecanismo de
memória ou “pecado original” que conspira
contra o aspecto dionisíaco ou subversivo da festa.
Funcionando como pólo de encontro entre a semente religiosa
e cívica, a arquitradicional e popular Estação
Primeira de Mangueira, vai celebrar, na Avenida, a retificação
do curso do Rio São Francisco (um dos maiores projetos
do atual governo), reproduzindo a devoção popular
que clama chuva e bênçãos dos céus.
Um carro alegórico com um ostensório enorme
foi projetado para um dos carros que exaltará a “Folia
de Reis”, festa típica dos ribeirinhos. Nesta
cena haverá um folião vestido de bispo e abençoando
o povo pobre que reza “o samba é minha oração”.
Incenso e cruzes não faltarão para dar realismo
a uma cena que promete incendiar o longo debate entre a Santa
Madre Igreja e o pessoal do samba. E no contágio da
festa, o cívico abraça o religioso lembrando
aos inocentes expectadores que “o sertanejo sonhou/banhou
de fé o coração/e transformou em verde-e-rosa/a
esperança do sertão”. Junto, canta-se
também a unidade nacional, a produção
de vinho e frutas e o governo.
Abafando a picardia inerente às manifestações
patrocinadas pelo Estado, o bispo celebrado não tem
nada a ver com dom Luiz Flávio Cappio, o religioso
que se manifestou contra a transposição do rio
São Francisco. Pelo contrário, ele é
esquecido em troca, oficializa-se a união entre o sacro/conservador
e o cívico/estatal.
Pena, né? Pena que a minha Escola do coração
tenha se prestado a isto. Pena que o atual governo tenha por
meio do ministro Ciro Gomes se dado ao trabalho de pedir dinheiro
para financiar o enredo aludido. Pena que nós tenhamos
que ver tudo isto e cantar “a carranca da Mangueira”.
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