Um
dos mais provocativos debates em torno do ritual carnavalesco
situa-se no esforço de cooptação que
as instâncias de poder, em particular o Estado, fazem
para se valer da festa como propaganda. O avesso disto,
a resistência, prova que a diversidade da celebração
é um dos segredos de sua persistência. Isto
verificado pelo ângulo acadêmico gera um debate
superior entre a evocação apolínea
e a dionisíaca. Lembrando que o deus Apolo é
o referencial da harmonia e da beleza e que Dionísio
é o ícone da bagunça e da falta de
graça, ficam polarizadas as expressões do
carnaval como festa disciplinada, submetida a concursos
e prêmios ou como manifestação irreverente,
hilária, desclassificadora da ordem.
O Brasil se presta para a exemplificação de
ambas tendências. De um lado, temos o carnaval oficial,
consagrador dos arranjos da exposição combinada
de enredo, samba, adereços, mas, na outra ponta temos
o carnaval de rua, dos blocos irreverentes que provocam
e zombam das maneiras “civilizadas” da grande
festa que consta dos calendários turísticos.
É claro que mesmo o carnaval oficial guarda espaços
de contestação e de crítica social,
mas nada comparado com o que é genuinamente popular.
Assim, enquanto nas avenidas o carnaval é mostrado
para o mundo como expressão de organizações
comunitárias que dimensionam o avanço de nosso
país, nos bairros, os blocos se investem da mais
pura brincadeira para zombar dos padrões elegidos
como politicamente corretos. E estes blocos existem em todos
os cantos do Brasil.
No Rio de Janeiro, vários deles tornam-se conhecidos
e são capazes de arrastar multidões que extravasam
suas queixas em marchinhas e slogans capazes de fazer rir
uns e chorar outros. Neste ano, além dos tradicionais
“Cordão do Bola Preta”, “Suvaco
do Cristo”, “Banda de Ipanema”, um deles
tem merecido atenção pelo teor hilário
de suas campanhas: o “Simpatia é Quase Amor”.
Eis alguns dizeres que serão divulgados no cortejo:
“A VIDA DE LULA É UM LITRO ABERTO”;
“GAROTINHO
É MEU PASTOR, POR ISTO ESTOU PASTANDO”;
“A
DIFERENÇA É QUE O POLÍTICO A GENTE
ESCOLHE E O LADRÃO ESCOLHE A GENTE”;
“RIO DE JANEIRO: O MAR É AZUL, O JARDIM BOTÂNICO
É VERDE, A GOVERNADORA É ROSINHA, O COMANDO
É VERMELHO E A COISA ESTÁ PRETA”.
E
assim a festa continua. Entre a pretensão de ser
uma “ópera de rua” que disfarça
a crítica social e a farra explícita que motiva
o povo, o carnaval se mantém e, com certeza, persiste
exatamente pela sua força irônica.
Entre a beleza e a bagunça nunca temos segurança
se estamos rezando no altar de Apolo ou de Dionísio.
Mas, com fervor, sabemos que os modernistas tinham razão
ao declarar que “o carnaval é a festa da (nossa)
raça”. É no carnaval que provamos o
que somos seja na ordem ou na desordem.