Hoje
em dia tudo é muito confuso. A história do
carnaval e de suas variações ficou de lado
e quem cuida do assunto, quase sempre, são jornalistas
ou o pessoal “que gosta da coisa”. Mesmo vendo
pelo ângulo da informalidade e da memória,
porém, cabe notar que ao lado do “grande”
carnaval, o “pequeno”, aquele que não
abre mão da irreverência e da crítica
social, resiste e acaba por revitalizar o conjunto da festa.
Mas ambos são cara/coroa da moeda festiva, que negocia
a alegria nacional.
No Brasil, bem como no mundo latino, o carnaval inegavelmente
sempre foi ligado à religião. Aliás,
foi com o universo do cristianismo que sempre o carnaval
manteve o mais frontal diálogo sendo inclusive “demonizado”
como algo mau, justificador da purificação
que viria pelas “cinzas” da quarta-feira. Mas
ironicamente foram os rituais religiosos que inspiraram
diversas estruturas organizacionais carnavalescas. Se na
escola de samba isto é claro, muitas vezes não
percebemos que a paternidade de outras manifestações
também o é.
O maior cronista carioca, João do Rio, lembra, por
exemplo, que a palavra “cordão” deriva
do uso da corda que separava os seguidores das procissões
de Nossa Senhora do Rosário, “padroeira dos
irmãos pretos”, do público em geral.
Adaptada ao carnaval carioca, os cordões cresceram
fora dos pressupostos sagrados dando origem a uma prática
que se perpetua até hoje no famoso “Cordão
do Bola Preta”, surgido em 1917 e que pretendia homenagear
uma foliona que usava um apertado vestido de bolinhas pretas.
Como manifestação de rua, o “cordão”
foi aperfeiçoado inspirando mais tarde o que viria
a ser conhecido como “ranchos”. Enquanto os
cordões permaneciam irreverentes e sem pretensão,
os ranchos ganharam destaques civilizados e passaram a compor
desfiles de inspiração mais elegante. Os cordões
geraram os “blocos” e os “ranchos”
as “escolas de samba” numa seqüência
evolutiva e indissolúvel.
Outra herança do catolicismo manifestada no carnaval
se deu pela transposição dos pastoris nordestinos,
que passaram a ser praticados no Rio de Janeiro. Com a vinda
de baianos que foram morar nos morros cariocas, depois da
Revolta de Canudos em 1887, e com o aumento deles passada
a Abolição, em 1888, a velha prática
de homenagem ao Menino Jesus, no bairro carioca da Penha,
gerou expressões dançantes e músicas
– das quais “A Estrela D’Alva” é
até hoje reconhecida. Assim os cordões davam
lugar aos ranchos com: pastoras, coreografia, participação
feminina e instrumentos de sopro. Mais: um gênero
musical surgia para distingui-los das demais formas festivas,
a marcha-rancho. Além disto, um mestre de canto cuidava
da harmonia do conjunto e havia também uma espécie
de rei e de rainha que seriam a “baliza” e a
“porta-estandarte”, hoje “mestre sala”
e “porta-bandeira”.
Em 1907, a elite, como sempre invejosa das genuínas
manifestações populares, numa clara dimensão
de poder, valendo-se do carro presidencial de Afonso Pena,
inaugurou a prática de desfiles conhecidos como “corso”.
Desde então, carros enfeitados passaram a desfilar
nas avenidas centrais fazendo uma charmosa guerra de confete.
Esta prática durou uns trinta anos, mas caiu em desuso,
fazendo, porém, com que o centro da cidade se tornasse
o espaço preferencial para os desfiles.
A ditadura militar valorizou sobremaneira o “grande”
carnaval. O de rua ficou relegado, sendo privilégio
de um grupo carioca resistir e fazer renascer os grupos
locais hoje conhecidos como blocos ou bandas.
A Banda de Ipanema, brotada exatamente em 1965, é
a expressão máxima da contradição
entre o popular e o oficial. Modelo para as demais manifestações
localizadas, ela homenageia a irreverência e é
hoje a mais poderosa manifestação da resistência
da prova da popularidade do carnaval de rua. Aliás,
vale fazer uma lista do número de blocos atuais e
ver se dá para não levá-los a sério:
“Quem num güenta bebe água”; “Empurra
que pega”; “Pela-saco”; “Bagunça
meu coreto”; “Meu bem, volto já”;
“Que merda é essa”; “Agora amassa”;
“Nóis encachaça mais num cai”;
“Vem cá, me dá”; “Banda
mole”; “É mole, mas é meu”.
E viva o carnaval de rua.