Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Mestre Sebe vai lá no fundo do baú e encontra fragmentos que contam a origem do cordão e do rancho, como eles se transformaram em bloco e escolas de samba e a resistência sempre irreverente do carnaval de rua.

Hoje em dia tudo é muito confuso. A história do carnaval e de suas variações ficou de lado e quem cuida do assunto, quase sempre, são jornalistas ou o pessoal “que gosta da coisa”. Mesmo vendo pelo ângulo da informalidade e da memória, porém, cabe notar que ao lado do “grande” carnaval, o “pequeno”, aquele que não abre mão da irreverência e da crítica social, resiste e acaba por revitalizar o conjunto da festa. Mas ambos são cara/coroa da moeda festiva, que negocia a alegria nacional.
No Brasil, bem como no mundo latino, o carnaval inegavelmente sempre foi ligado à religião. Aliás, foi com o universo do cristianismo que sempre o carnaval manteve o mais frontal diálogo sendo inclusive “demonizado” como algo mau, justificador da purificação que viria pelas “cinzas” da quarta-feira. Mas ironicamente foram os rituais religiosos que inspiraram diversas estruturas organizacionais carnavalescas. Se na escola de samba isto é claro, muitas vezes não percebemos que a paternidade de outras manifestações também o é.
O maior cronista carioca, João do Rio, lembra, por exemplo, que a palavra “cordão” deriva do uso da corda que separava os seguidores das procissões de Nossa Senhora do Rosário, “padroeira dos irmãos pretos”, do público em geral. Adaptada ao carnaval carioca, os cordões cresceram fora dos pressupostos sagrados dando origem a uma prática que se perpetua até hoje no famoso “Cordão do Bola Preta”, surgido em 1917 e que pretendia homenagear uma foliona que usava um apertado vestido de bolinhas pretas.
Como manifestação de rua, o “cordão” foi aperfeiçoado inspirando mais tarde o que viria a ser conhecido como “ranchos”. Enquanto os cordões permaneciam irreverentes e sem pretensão, os ranchos ganharam destaques civilizados e passaram a compor desfiles de inspiração mais elegante. Os cordões geraram os “blocos” e os “ranchos” as “escolas de samba” numa seqüência evolutiva e indissolúvel.
Outra herança do catolicismo manifestada no carnaval se deu pela transposição dos pastoris nordestinos, que passaram a ser praticados no Rio de Janeiro. Com a vinda de baianos que foram morar nos morros cariocas, depois da Revolta de Canudos em 1887, e com o aumento deles passada a Abolição, em 1888, a velha prática de homenagem ao Menino Jesus, no bairro carioca da Penha, gerou expressões dançantes e músicas – das quais “A Estrela D’Alva” é até hoje reconhecida. Assim os cordões davam lugar aos ranchos com: pastoras, coreografia, participação feminina e instrumentos de sopro. Mais: um gênero musical surgia para distingui-los das demais formas festivas, a marcha-rancho. Além disto, um mestre de canto cuidava da harmonia do conjunto e havia também uma espécie de rei e de rainha que seriam a “baliza” e a “porta-estandarte”, hoje “mestre sala” e “porta-bandeira”.
Em 1907, a elite, como sempre invejosa das genuínas manifestações populares, numa clara dimensão de poder, valendo-se do carro presidencial de Afonso Pena, inaugurou a prática de desfiles conhecidos como “corso”. Desde então, carros enfeitados passaram a desfilar nas avenidas centrais fazendo uma charmosa guerra de confete. Esta prática durou uns trinta anos, mas caiu em desuso, fazendo, porém, com que o centro da cidade se tornasse o espaço preferencial para os desfiles.
A ditadura militar valorizou sobremaneira o “grande” carnaval. O de rua ficou relegado, sendo privilégio de um grupo carioca resistir e fazer renascer os grupos locais hoje conhecidos como blocos ou bandas.
A Banda de Ipanema, brotada exatamente em 1965, é a expressão máxima da contradição entre o popular e o oficial. Modelo para as demais manifestações localizadas, ela homenageia a irreverência e é hoje a mais poderosa manifestação da resistência da prova da popularidade do carnaval de rua. Aliás, vale fazer uma lista do número de blocos atuais e ver se dá para não levá-los a sério: “Quem num güenta bebe água”; “Empurra que pega”; “Pela-saco”; “Bagunça meu coreto”; “Meu bem, volto já”; “Que merda é essa”; “Agora amassa”; “Nóis encachaça mais num cai”; “Vem cá, me dá”; “Banda mole”; “É mole, mas é meu”. E viva o carnaval de rua.

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