Dia
destes pensava nos impactos modernizadores de nosso tempo
e na relação fatal com os comportamentos sociais.
Pois é, foi quando me dei conta da administração
do tempo pessoal. Ninguém tem mais espaço
para o convívio. Até mesmo instantes de lazer
individual ficam comprometidos com a pressa. A urgência
do viver contemporâneo tem imposto limites drásticos
na vida de todos.
Foi constatando este fenômeno que passei em revista
o meu passado comigo mesmo. Antes, devo dizer que sempre
fui dado a uma aprazível convivência com a
solitude (não confundir com solidão mórbida).
Sim, gosto muito de ficar sozinho e me entreter com leituras,
projetos de livros, escrita de um diário que se alonga
desde os meus tenros anos. E também de quando em
vez começo uma ou outra coleção de
objetos. Acho que sou um colecionador em potencial e como
gosto de juntar coisas, ao longo dos anos tenho acumulado
séries de objetos que, contudo, não chegam
a obstinação de certos colecionadores mais
sérios.
Menino criado em colégio interno, em Lorena, no celebrado
São Joaquim – onde estudaram Jânio Quadros,
Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, entre outros –
tornei-me “filatelista”. E com que carinho dedicava-me
a caçar selos do mundo todo? Embora limitado pelos
muros dos salesianos – e talvez por isto mesmo –
buscava somar séries de quantos países podia
imaginar. Minhas economias eram parcas, mas mesmo assim,
em viagens a São Paulo, gastava o tempo disponível
em casas da Rua São Bento onde, então, sonhava
com os trajetos de cartas. Vendo de agora, acredito, estava
nessa coleção o desenho de minha vida de itinerante
inveterado. Pai, escolhi um de meus filhos, Davi, para doar
o modestíssimo acervo que, contudo, conta de um tempo
precioso para mim.
É verdade que algumas coleções temáticas
são estranhas. Eu mesmo não saberia dizer,
por exemplo, porque mais tarde comecei outra “mania”:
guardar imagens de sapos. Esta, diga-se, é até
hoje a mais presente de minhas coleções. Tenho
certeza de que os sapos me impressionavam desde os contos
infantis. E não é preciso grande esforço
para constatar a presença desses anfíbios
nas historinhas de Anderesen ou dos irmãos Grimm.
Entre nós, de Lobato ao folclore e às cantigas
de crianças (sapo-cururu, na beira do rio, quando
o sapo canta maninha é que vai chover...) os sapos
são humanizados e assumidos como símbolos
de transformação.
Quem não se lembra do sapo beijado pela donzela que
no ato o faz príncipe? E do coitado jogado na parede
e renascido moço bonito. Haverá alguém
que não se impressione com a transformação
dos minúsculos girinos em rãs? E há
algo mais bucólico do que o coaxar de sapos à
noite? Pois bem, saibam todos que, onde vou, sempre procuro
comprar um sapo e esta coleção quero deixar
para meu neto Gabriel, filho de Felipe.
Convencer os outros da validade de colecionar ovos pintados
é mais fácil. Símbolo da vida, o ovo
merece respeito natural. Comecei a guardá-los em
uma remota temporada de Páscoa e tenho até
uma apreciável série. É para minha
neta Manuela que vou, um dia, doar a estante de ovos comprados
onde vou. E os tenho de muitas plagas: russos, poloneses,
ucranianos, franceses. De tal forma a “coleção”
cresceu que tive que optar entre os naturais e os feitos
de gesso, porcelana, barro. Sempre alguém me presenteia
com ovos de pedra e estes eu guardo em separado, pois aprendi
que dão sorte.
Garrafas coloridas e de formatos incomuns fazem parte de
outra mania. Comecei a guardá-las porque não
tinha coragem de jogar fora esses fracos coloridos, invulgares
e sugestivos. Creio ter mais de trinta garrafas que afinal
são justificadas como objetos de decoração.
É para meu filho Pedro que vou deixar esta série
que promete crescer.
Confesso estranhar a proposta desta crônica. De um
lado, parece um inventário, mas no avesso disto está
a meditação sobre o tempo, o convívio
comigo mesmo, e o prazer que, mais que mania, é um
atestado de respeito aos compromissos inexplicáveis
como o sonho de guardar lembranças.