Quarta-feira
de cinzas. Praia de Itamambuca. A lua cheia reprime a maré
e faz a areia dura e úmida invadir o mar. Cautelosos banhistas
assediados pelos incautos de sempre buscam as ondulações
próximas da zona de arrebentação, sem correr
o risco de serem atropelados por uma prancha. O sol, as ondas para
surfistas iniciantes e o reduzido número de banhistas indicam
que o carnaval chegara ao fim. Até que enfim!!
O sol forte e direto espanta para os guarda-sóis os mais
precavidos. Mães recolhem filhos menores. 10 horas é
o limite para peles mais delicadas e pra quem não duvida
que os buracos na camada de ozônio fazem dos raios solares
uma perigosa ameaça para epidermes de qualquer idade.
Toca o celular; meu filho anuncia que está saindo de Paraty
na companhia da noiva e mais um casal. Passariam por Itamambuca
para um derradeiro banho de mar, antes de seguir para Sampa. Pelos
meus cálculos, havia tempo para uma boa ducha antes de recebê-los.
Vou ter de seguir a Paraty para recolher a tralha de viagem, inclusive
o obediente Max, um cock spaniel cor de mel que fora deixado para
trás.
Quase uma hora depois, tempo mais que suficiente para percorrer
pouco mais de 60 quilômetros de rodovia Rio-Santos, não
havia qualquer sinal dos jovens. A caixa-postal do celular indicava
que eles se encontravam fora da área de cobertura. Por volta
das 11h e 30m resolvi partir. Ir a Paraty, voltar a Ubatuba e seguir
para São Paulo, na mesma tarde, e ainda sujeito a todos os
desgastes provocados pelo excesso de veículos, não
é o melhor programa para uma modorrenta quarta-feira de cinzas.
Saí com a certeza de que cruzaria com meu filho Pedro e seus
amigos. Cruzei com carros muito parecidos de gente que fugia do
sol quente. Outros queriam apenas assistir o último jogo
antes da Copa da seleção canarinho.
Atento, não consegui localizar o carro. Cena que se repetiu
na Rio-Santos até Ubatumirim, que fica pouco mais de 15 quilômetros
de Itamambuca. Cena que se inverteu diante dos faróis que
piscavam solidariamente para avisar, provavelmente, que havia um
comando da Policia Rodoviária. A fumaça escura que
subia no meio da estrada, porém, anunciava um grave acidente.
Dois carros haviam se chocado de frente.
Parei a cerca de 30 metros dos carros que ardiam em fogo. Peguei
o extintor e juntei-me aos voluntários que portavam garrafas
metálicas vermelhas idênticas. Assim que coloquei os
pés no asfalto uma pergunta tomou conta de mim: Será
o carro do Pedro?
Mais alguns passos, o dilema aumentou. Um jovem loiro, muito jovem,
com cabelos cortados a estilo punk, jazia desfalecido no acostamento.
Não era conhecido. Um dos carros era de Divinópolis,
MG. Mas o outro era preto, de São Paulo e do mesmo tipo do
carro onde meu filho deveria estar. Ou seria um modelo parecido?
Alguém grita “Não tem mais ninguém dentro
dos carros”. Outro voluntário emenda: “Os carros
podem explodir!!” Ninguém se importa. A solidariedade
fala mais forte. Ataco o fogo com a única arma que dispunha.
Na segunda vez, o extintor já não tem mais carga.
O mesmo acontece com os dez ou quinze outros que tentam debelar
o incêndio. As chamas são enormes. O calor insuportável
aumenta ainda mais o desespero e o sentimento de impotência.
E eu, tomado também pelo medo, não quero ver os feridos
(?). Prefiro apenas conferir o número da placa e convencer-me
que não se trata do carro que procuro.
Com dificuldade, passo pelos veículos que ardem. Não
conheço nenhum dos três jovens desacordados, muito
feridos e queimados que aguardam um socorro que nunca chega. Os
celulares não funcionam; estão fora da área
de cobertura. Ninguém sabe o que fazer com os feridos que
sangram desacordados. O jovem punk é retirado para mais longe.
Uma explosão seria fatal.
Chega a Polícia Rodoviária Federal. Não há
o que fazer até a chegada do resgate que rapidamente remove
todos os feridos que mal dão sinais de vida. O tráfego
se restabelece. Meu coração bate menos apressado.
Celular na mão, encosto o carro assim que ele registra sinais
(de vida?). Falo com Itamambuca. Pedro havia chegado e não
sabia de nada.
Minha alegria dura pouco. Não consigo esquecer as imagens
daqueles jovens, muito jovens, feridos e nem imaginar a dor dos
seus pais ao receberem a notícia. Um sofrimento muito maior
do que percorrer os 30 metros de eternidade que me separavam dos
carros em chamas.
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