Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy

O sambista criou frase antológicas como a sobre bebida alcoólica: “Eu bebo! Porque há o que bebe e a turma que toma. Eu sou da turma que bebe porque não tomo nada de ninguém”.

Você sabe o que é Jamelão? É possível que a resposta seja negativa quando se refere a uma fruta muito doce, branca por dentro e escura por fora. Mas se a pergunta for um pouco diferente, assim: você sabe quem é Jamelão? As chances de respostas positivas aumentam e muito, pois ele é o cantor incrível, de quase 93 anos de idade e a maior figura de sambista da história do carnaval brasileiro. E não há exagero nisto. Nenhum.
A novidade é que o tal Jamelão é um dos frasistas mais agudos de nossa cultura. Conhecido por suas respostas contundentes, ele é famoso pelas tiradas rápidas e sempre inteligentes, ainda que às vezes mal humoradas. Aliás, certa feita em entrevista à Folha de São Paulo questionou-se o porquê dele ser sempre carrancudo, ao que se ouviu “ué? Rir de quê?”. Outra passagem soberana se deu quando contestou a pergunta sobre gostar de ser “puxador” de samba. Irritado, o dono da voz mais metálica do Brasil disse: “puxador, eu? Puxador é quem fuma maconha ou rouba carro. Eu sou intérprete”.
Talvez esta aparente arrogância tenha explicação na vida do menino que nasceu com o nome de José Bispo, pobre do bairro de São Cristóvão, e que foi: engraxate, vendedor de jornal, feirante, contínuo, tocador de tamborim e cavaquinho nos subúrbios cariocas, gerente de casa de gafieira, e que, desde os 15 anos, participou como ritmista da Estação Primeira de Mangueira. Apenas conheceu algum sucesso depois que virou um dos mais prestigiados crooners da não pouco conhecida Orquestra Tabajara. Diga-se que seu sucesso veio mais pela aceitação no exterior do que propriamente no Brasil, onde, quiçá, não fosse pela sua amadíssima verde e rosa e pela flêugma de cantor de músicas de fossa ele sequer se manteria.
Uma faceta pouco revelada de Jamelão é a consciência de seu papel social. Negro assumido e crítico do mito da democracia racial, uma de suas mais agudas observações revela que “o artista negro sempre encontra uma barra mais pesada. No meio musical todo mundo quer o crioulo, mas para fazer figuração, para tocar pandeiro e agogô e as mulatas para sambar. Para ser estrela não serve, tem de ser branco e de preferência boa pinta. Não grito contra isso porque sei que as pessoas que hoje me desprezam amanhã vão me amar. Mas já fui deixado de lado em função de outros caras só porque eles eram brancos”.
Seria, contudo, errado perceber apenas seu lado zangado. Em momentos precisos, sem perder jamais a postura de quem ostenta a própria história para dizer alguma coisa, Jamelão faz comparações preciosas. Recentemente, duas frases suas ganharam os noticiários. Uma primeira sobre o álcool onde dizia em entrevista à Rádio Jovem Pan “eu bebo! Porque há o que bebe e a turma que toma. Eu sou da turma que bebe porque não tomo nada de ninguém”. Em outra situação, em pleno desfile de modas, referindo-se às modelos declarou “há quem goste das magras e há quem goste das gordas. Eu gosto de todas”.
Mas é preciso reconhecer a qualidade musical de Jamelão. Como intérprete, começou em 1954 quando as gravações de “Folha Morta” (Ari Barroso) e “Leviana” (Zé Kéti e Armando Reis) o fizeram líder das paradas de sucesso. Mas talvez sua consagração definitiva tenha vindo dois anos depois quando identificado de corpo e alma gravou a antológica “Exaltação à Mangueira” (Enéias Brito e Aluísio Augusto da Costa), feita para o desfile daquele ano. Para mim, particularmente, a voz de Jamelão foi eternizada em 1959, na gravação de "Ela Me Disse Assim” de Lupicínio Rodrigues. Convém lembrar que em 1972 o sucesso do LP “Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues” e que em 1987 ele repetiu a dose com o precioso “Recantando Mágoas - A Dor e Eu”.
Hoje não se sabe se Jamelão é do público ou o público é de Jamelão. Quando, no carnaval de 1990, disse que não mais participaria dos desfiles, ele lançou a sentença fatal “Queria agradecer a toda a escola, à bateria, maravilhosa. Estou encerrando aqui meu trabalho como intérprete de samba-enredo.” Muita gente chorou. Mas, felizmente, ele voltou no ano seguinte e segue até hoje.

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