Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy

Alguém capaz de produzir tiradas geniais como "Escrever bem é mijar. É deixar que o pensamento flua como a vontade da mijada feliz" é o Lobato que merece ser ressuscitado e visto como gente.

Sexta-feira, dia 7 de abril, Taubaté recebeu um prêmio. Ou melhor, dois. Marisa Lajolo proferiu uma palestra sobre Monteiro Lobato na Câmara Municipal. Nada poderia ser mais apropriado: a maior especialista em literatura brasileira falando do autor que mais gosta. Não bastasse o entusiasmo da professora da UNICAMP pela seara da crítica literária, ninguém no Brasil conhece tanto a obra Lobateana como ela. Suas recentes pesquisas a levaram para os Estados Unidos onde vasculhou documentos afeitos a presença do nosso taubateano enquanto Adido Comercial em Nova York, entre 1927 e 1931. Com isto, busca-se reinventar um Lobato que fuja dos padrões exaustos do mesmismo temático a que tem sido submetido.

Mas, o que tem a ser dito sobre Lobato? Pessoas que fogem do lugar comum respondem que praticamente tudo está por ser revelado. É preciso virar o padrão analítico que se exaure em elogios fugazes e propor originalidades na abordagem de uma biografia que vale contemplações distintas. E não faltam documentos dele e sobre ele. Como poucos autores, Lobato tem sido visto sob a ditadura de alguns clichês que deprimem o seu significado como pessoa humana. Ao supervalorizar alguns ângulos – sempre os mesmos – de sua formidável trajetória, o que fica visível é um pedaço do homem público, do escritor de contos infantis, do regionalista, do lutador pelo petróleo nacional, do anti-modernista. Esta construção heróica, contudo, promove equívocos e desvios que deformam a grandiosidade de um personagem que seria mais apreciável se mostrado em sua integridade. Lobato foi pessoa de muita contradição. Seja em matéria literária, política, social ou religiosa, poucos como ele foram tão plenos de idas e vindas, contornos com arestas não desbastadas, desmentidos que até clamam ironias. E, diga-se, isto não é mau. Vejamos alguns aspectos deste homem fascinante.

Talvez o melhor texto da chamada “obra adulta” de Lobato seja o “Choque das raças” ou “Presidente Negro”. No entanto, este é seu trabalho menos divulgado. Claramente conservador, em termos políticos, Lobato é apontado como progressista e pelas aproximações de conveniência com o Partido Comunista, foi considerado subversivo. As variações filosóficas de Lobato vão lisamente desde a exaltação de Friedrich Nietzsche a Henry Ford e isto passa batido pelos que o vêem como grande nacionalista. Em termos religiosos nem se diga. Pode-se afirmar que era agnóstico, mas não deixava de revelar simpatias por uma Mesa Branca. Pena que estas “variações” nunca sejam expostas porque junto com este “ocultamento” sepulta-se também o cidadão comum que ele foi. É possível que esta mania de fazê-lo herói sem contradições o faça menos simpático do que seria. Na mesma linha, o parcelamento de sua atuação – como escritor, político, homem público – se explica pela lógica desta deificação tola.

É exatamente nesta senda, na busca da normalidade do “anormal”, que se pode operar na busca de um Lobato mais terno, menos monumental e por isto mais próximo. Brada-se contra a repetição ad nauseam de um Lobato quase mártir da sociedade civil. Propõe-se em troca um ser com fraquezas como muitos outros, alguém capaz de dizer coisas como "Escrever bem é mijar. É deixar que o pensamento flua como a vontade da mijada feliz" (fico sempre me perguntando porque este autor de tiradas geniais nunca é mostrado). É este Lobato que merece ser ressuscitado e visto como gente. Um dos mais magníficos trabalhos que Marisa Lajolo apresenta é a recriação do entorno do escritor com seu mundo imediato, doméstico. Nesta linha, aliás, a valorização de dona Purezinha, a esposa sempre tão esquecida de Lobato, é uma das páginas recuperada na vida dele e de seus familiares.

Marisa Lajolo tem sido feliz em suas buscas. Merecidamente, ela conseguiu para a UNICAMP, com financiamento da FAPESP para o trato arquivístico do riquíssimo arquivo e coleção de objetos de Lobato, uma doação de fazer inveja a qualquer lugar. A fantástica coleção de aquarelas, alguns poucos óleos, as séries de valiosas fotos, tudo enfim que a família guardou está sob a tutela do centro que Marisa comanda e anima com pesquisas do melhor quilate acadêmico. E o mais surpreendente: o material está sendo disponibilizado para o público em geral. Este trabalho, aliás, notabiliza Marisa Lajolo e a UNICAMP pela generosidade intelectual. Certamente, logo os estudos sobre o grande taubateano serão diversificados e menos simplistas. Tomara que nossos conterrâneos se coloquem na fila dos que saberão ver mais e melhor quem saiu de sua terra e até o presente não mereceu estudos adequados de seus patrícios.


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