Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy
Mestre José Carlos Sebe recupera com humor as marcas que a neve do tempo deixaram nos usos e costumes, e não só nos cabelos dessa geração com mais de meio século nas costas.

Dia destes pensava nos limites impostos pelas definições correntes em nosso vocabulário. Verdadeiras prisões, os conceitos nos apertam e reduzem o que queremos dizer. Vendo isto como camisas de força, tenho me rebelado contra a simplificação dos significados. Neste sentido, briguei muito com os conceitos estabelecidos sobre a velhice. Não que não aceite a passagem dos anos. Pelo contrário, vejo nos muitos aniversários a delícia do envelhecimento com saúde, vigor profissional e filhos/netos por perto.
Os dicionários, contudo, nos jogam para baixo e apenas nos reconhecem como debilitados fisicamente. Um horror! Veja por exemplo a citação ilustrativa do Aurélio para o “nosso” verbete “Envelhecera. O espelho mostrava-lhe os cabelos brancos, as rugas” (Heberto Sales, Histórias ordinárias, p. 107”.

Mas o que seria envelhecer?

Pretendendo ser mais generoso com os anos vividos, lembrei-me do soneto de Machado de Assis em que o autor retoma a consciência da fluidez do tempo “Mudou o Natal ou mudei eu?”. Talvez a transformação seja a grande marca das eras experimentadas. Não apenas a mudança do nosso corpo, mas como o envelhecer permite estranhar a sucessão de fatos e coisas ao redor. Como tudo muda! E como se rejuvenescem as palavras, os substantivos e adjetivos.
Visitemos algumas referências que nos fazem sentir velhos: o tecido “brim” virou jeans; o velho “pão com carne assada e queijo” virou “sanduíche” que virou “Bauru” que virou “fast food”; “petisco” mudou para “aperitivo” que virou “deli”; “centro comercial” se transformou em “shopping center”. “Cheiro” virou “perfume” e, “safadeza de político ladrão” virou “caixa dois” que virou “dinheiro não contabilizado”.
Se meu pai fosse vivo, provavelmente não gostaria que as “liquidações” de nossas lojas virassem “sale” e eu estranho muito quando vou comprar uma “passagem aérea” e entregam-me um “e-ticket”. Mas a coisa vai longe.
Antes, as mulheres ficavam “incomodadas”, depois “menstruadas” e agora têm “TPM”; a antiga “danação” virou “neurastenia”, depois “histeria” e agora todo mundo anda “estressado”; na academia onde se fazia “ginástica”, hoje se “malha”, e, o que é pior, não se malhar para “arrumar o corpo” e sim para ficar “sarado” ou com “barriga tanquinho”; o “corpete” das moças virou “sutiã” e agora o “silicone” o dispensa; as mulheres do meu tempo usavam “rouge” e hoje se valem da mesma coisa para dizer glamourosamente “blush”; e “peruca” que virou “aplique” que foi substituído por “interlace” que deu lugar ao “megahair”; o famoso “alisamento” de cabelo virou “alongamento” e já é “chapinha” ou “escova progressiva”. Pode?
Pode-se pensar que antes as pessoas “encrespavam” o cabelo, mas que agora elas “encaracolam”? E as “brilhantinas” que viraram “gel”? E quando a gente fala de correio então... ai que saudade dos selos coloridos, dos envelopes, telegramas, dos cartões de natal, hoje, tudo virou “e-mail” que, coitados, já se vêem ameaçados pelos “torpedos”.
Que o “telefone móvel” virou “celular” todo mundo sabe, mas não é esquisito pensar que a “vitrola” se transformou em “toca discos” e no presente é “CD player”, depois vieram os “walkmen” e hoje já desbancados, solenemente, pelos “i-pod”. E os nossos moderníssimos “disquetes” que deram lugar aos CDs e agora são humilhados pelos “pendrives”? Lembram-se dos “discos 78 rotações”, pois bem viraram “LPs” que agora são “CDs “e que podem ser contidos em “ships” quase invisíveis.

Vocês entendem o que eu quero dizer? Envelhecer é observar todas estas mudanças e não ter mais tempo, sequer, para lembrar como era antigamente, pois, “recordar não é mais viver”... não... é envelhecer. É coisa de alguém que virou “tiozinho”, que virou “coroa” e que pode pagar meia no cinema, ter lugar nas filas e nos ônibus, mas que sequer tem tempo para lembrar.

 

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