Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Na pátria de chuteiras, nada como um acadêmico apaixonado pelo esporte bretão e pela refinada análise sociológica para analisar detalhes que passam desapercebidos para nós pobres mortais.

Eu sabia que seria assim. Jurava até. E não deu outra: só se fala em futebol. Mesmo quem gosta tanto deste esporte está espantado com a ênfase nesta Copa. E nem se pensa no eco louco de uma derrota. Chega a ser fantástico o entusiasmo exarado das apresentações da Seleção. Lojas do mundo inteiro estampam nossos jogadores como os melhores do mundo e o verde e amarelo enfeita vitrines da Nike, Sony, Disney em Nova York como no Brasil todo. E tudo se dimensiona espalhado em roupas, chapéus, guarda-chuvas, papel de cartas e embalagens.
É uma estranha febre sem dúvidas, mas cheia de graça e promessa. O futebol é o ópio bom do povo que se entorpece de alegria sã. E a Copa tem mesmo que ser celebrada, pois até o amargo Nelson Rodrigues reconheceu que a vitória de 1958 promoveu uma virada no humor brasileiro que então, pela vez primeira, teve sua auto-estima dilatada e diminuído o crônico complexo de inferioridade que nos distingue mundo afora. Foi o grande alento que precisávamos para nos ver melhores em alguma coisa.

Antes da Copa passada, recebi a visita de Alex Bellos, jornalista inglês que fazia pesquisas sobre o aclamado livro que em português recebeu o sugestivo título de “Futebol, o Brasil em campo” (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003). Parte do resultado de nosso encontro está no capítulo V, “O anjo de pernas tortas” onde é rendida a mais justa das homenagens ao saudoso Mané Garrincha.
Na ocasião, falávamos do significado das pernas na cultura brasileira. Entre menções a Roberto DaMatta e demais autores que já definiram que “não existe pecado abaixo do Equador” (lembrando que na cultura brasileira “Equador” equivale, no corpo humano, ao umbigo) recorri ao nosso Monteiro Lobato e à famosa enquete sobre o Saci. Assim Bellos assinalou o caso: “outra das criações mais populares do Brasil – certamente a mais original, de acordo com Monteiro Lobato, pioneiro da literatura infantil brasileira – é o saci-pererê. O endiabrado saci-pererê possui três características definidas: é preto, fuma um cachimbo e tem uma perna só. Está sempre fazendo os outros de tolos, libertando cavalos à noite, estragando espigas de milho; causando caos onde reina a calma. Sua perna única o torna leve e ligeiro. A maneira de pará-lo e aprisiona-lo num redemoinho”.
No mesmo capítulo, Bellos, ainda falando de 1958, recorda que “o jogo contra os soviéticos foi também o momento em que o Brasil ficou mais preto. Pelé era negro, Garrincha uma mistura de sangue negro e índio. O time que começou o jogo contra a Áustria tinha apenas um jogador negro, Didi. Na fase final do torneio, o Brasil escalou três negros e dois mestiços – o primeiro time inteiramente multirracial a vencer uma Copa do Mundo”.
Recentemente, Bellos visitou-me novamente. Desta feita, o tema que matizou a conversa foi a questão dos goleiros. O jovem inglês anda preocupado em explicar a existência de uma hierarquia interna, racial e surda, na composição dos times. A atenção absoluta do jornalista está centrada em definir porque, pela primeira vez, teremos um negro como goleiro.
A constatação que passa reto a qualquer nacional clamou cuidados dele que contrastou a “morenês” da linha de frente e a hegemonia branca dos goleiros. Certamente o problema é interessante, mas fica ainda mais atraente quando lembramos que os jogadores mais queridos do Brasil sempre obedeceram à máxima afetiva de nossa cultura que os chama pelo primeiro nome, ou por apelidos carinhosos (Pelé, Didi, Garrincha, Robinho, Ronaldinho Gaúcho). No caso em pauta, Dida tanto é preto como negro. Estaria aí a prova da revolução racial? Caso a resposta seja afirmativa, não resta dúvida que o Brasil mudou e que o futebol é mesmo uma boa arena para a verificação das alterações de conceitos de preconceitos. Então por isto também, viva a Copa do Mundo.

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