Não costumo pedir licença
aos meus filhos e netos para algumas aventuras que causam
estranheza. Atravessei a fronteira do México com
o mesmo desempenho que fui a uma visita a Daslu. Freqüento
quadras de Escolas de Samba com a mesma desenvoltura que
visito museus.
Valente, porém, achei que para me sentir morador
do Rio de Janeiro seria pelo menos fundamental ir a uma
festa popular “autêntica”. Foi assim que
decidi por um baile funk. E dos bons. Logicamente, não
iria sozinho e nem chegaria ou como turista. Nem é
preciso dizer como tive que me esforçar para não
parecer tão branco, tão careca, tão
idoso. Resolvi assim: iria de camisa preta e calça
jeans, com um bonezinho destes de abas que taparia tanto
a careca como os últimos fios de cabelos brancos.
Tênis velho é claro. E muita adrenalina para
acompanhar o grupo de mais quatro jovens, sendo dois da
“comunidade”.
É evidente que sem este esquadrão não
só me faltaria coragem como naturalidade para entrar.
O local indicado era o fabuloso Castelo das Pedras que fica
no coração da favela Rio das Pedras. Fomos
de carro, mas havia vans em profusão e uma seqüência
incalculável de ônibus. Vi também carros
elegantes que, contudo, eram mais de moçoilos da
zona sul. O enorme estacionamento dava dimensão do
que viria a seguir, pois este é o mais famoso dos
cerca de 100 bailes funks que acontecem por aqui nos finais
de semana.
O enorme salão abriga cerca de cinco
mil pessoas, mas confesso que parecia ter o dobro. A altura
do som é indizível. Creio nunca ter ouvido
algo tão eficiente e mesmo horas depois ainda o zumbido
das músicas – músicas? – me aturdiam.
Mas como valeu a pena!
Desde que passamos pela revista da porta, senti-me algo
libertado. Entendi melhor o que os antropólogos dizem
sobre a “inversão de valores”.
Sim, lá dentro todos pareciam iguais e eu até
me senti meio amulatado. E mais jovem diga-se, pois a dança
envolve a todos e os corpos tão juntos obedecem a
um impulso mais ou menos natural onde se chacoalha tudo
e jogam-se os braços para cima. Entrar num bonde
foi automático. E lá estava eu no meio da
turma.
Em alguns minutos eu não era mais o respeitável
senhor que serve à minha persona, mas um funkeiro
que envergonharia minha prole. Mas não tinha jeito
de ser diferente. O calor asfixiante justificava a pouca
roupa da galera que se mexia muito a vontade. Tudo era tão
natural que a propalada sem-vergonhice – que existia
– não descontextualizada era quase normal.
E de repente não tinha mais rico ou pobre, bonito
ou feio, bem ou mal vestidos. Havia o funk.
Felizmente a casa tem dois andares e em
cima há um terraço onde entre uma chacoalhada
e outra a gente pode tomar um arzinho e ouvir o mais legítimo
carioquês. E como me fez sentido aquele jeito estapafúrdio
de falar. Sabe, até eu estava surfando na onda das
pattys, tigressas, popozudas e cacthorronas, dos pitchadores
e muluquentos. Entendi tudo.
Se é verdade inequívoca que o tom dominante
é machista, não há também como
deixar de reconhecer que nesta zona de alegria não
houve brigas, não senti a presença de bandidos
ou gangs aterrorizantes e tudo era aceitavelmente neutro.
Também fiquei sem entender o sentido divisório
de bailes “funks A” e “bailes funks B”.
Se os “As” são os dos ricos, e “Bs”
dos pobres, ali não dava para delinear frações.
Democracia. Havia de tudo e todos eram mais iguais que em
outros lugares. E sabe que não é caro. Sequer
as bebidas são fora de tabela. E a luz é tão
bem planejada que a feiúra do local não aparece.
De brinde, imaginem, banheiros limpos.
No espírito da “casa”,
entendi o sentido da felicidade urbana carioca. Politicamente
incorreta, antifeminista, sem nenhuma sofisticação,
este é um ponto fundamental para quantos querem conhecer
a intimidade carioca e nela entender um pouco mais de uma
cidade que se mostra diferente dos cartões postais.
E viva o funk que só poderá ser compreendido
nos lugares que lhes são próprios. No Rio
de Janeiro.