Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy


Mestre Sebe, consagrado internacionalmente como especialista em história oral, foi conhecer in loco as peripécias de um baile funk. Escondido atrás de um bonezinho, lá foi ele morro a cima conhecer uma parte do Rio de Janeiro desconhecida por acadêmicos e pela elite que finge ignorar o paradeiro dos filhos nos fins de semana.

Não costumo pedir licença aos meus filhos e netos para algumas aventuras que causam estranheza. Atravessei a fronteira do México com o mesmo desempenho que fui a uma visita a Daslu. Freqüento quadras de Escolas de Samba com a mesma desenvoltura que visito museus.
Valente, porém, achei que para me sentir morador do Rio de Janeiro seria pelo menos fundamental ir a uma festa popular “autêntica”. Foi assim que decidi por um baile funk. E dos bons. Logicamente, não iria sozinho e nem chegaria ou como turista. Nem é preciso dizer como tive que me esforçar para não parecer tão branco, tão careca, tão idoso. Resolvi assim: iria de camisa preta e calça jeans, com um bonezinho destes de abas que taparia tanto a careca como os últimos fios de cabelos brancos. Tênis velho é claro. E muita adrenalina para acompanhar o grupo de mais quatro jovens, sendo dois da “comunidade”.
É evidente que sem este esquadrão não só me faltaria coragem como naturalidade para entrar. O local indicado era o fabuloso Castelo das Pedras que fica no coração da favela Rio das Pedras. Fomos de carro, mas havia vans em profusão e uma seqüência incalculável de ônibus. Vi também carros elegantes que, contudo, eram mais de moçoilos da zona sul. O enorme estacionamento dava dimensão do que viria a seguir, pois este é o mais famoso dos cerca de 100 bailes funks que acontecem por aqui nos finais de semana.

O enorme salão abriga cerca de cinco mil pessoas, mas confesso que parecia ter o dobro. A altura do som é indizível. Creio nunca ter ouvido algo tão eficiente e mesmo horas depois ainda o zumbido das músicas – músicas? – me aturdiam. Mas como valeu a pena!
Desde que passamos pela revista da porta, senti-me algo libertado. Entendi melhor o que os antropólogos dizem sobre a “inversão de valores”.
Sim, lá dentro todos pareciam iguais e eu até me senti meio amulatado. E mais jovem diga-se, pois a dança envolve a todos e os corpos tão juntos obedecem a um impulso mais ou menos natural onde se chacoalha tudo e jogam-se os braços para cima. Entrar num bonde foi automático. E lá estava eu no meio da turma.
Em alguns minutos eu não era mais o respeitável senhor que serve à minha persona, mas um funkeiro que envergonharia minha prole. Mas não tinha jeito de ser diferente. O calor asfixiante justificava a pouca roupa da galera que se mexia muito a vontade. Tudo era tão natural que a propalada sem-vergonhice – que existia – não descontextualizada era quase normal. E de repente não tinha mais rico ou pobre, bonito ou feio, bem ou mal vestidos. Havia o funk.

Felizmente a casa tem dois andares e em cima há um terraço onde entre uma chacoalhada e outra a gente pode tomar um arzinho e ouvir o mais legítimo carioquês. E como me fez sentido aquele jeito estapafúrdio de falar. Sabe, até eu estava surfando na onda das pattys, tigressas, popozudas e cacthorronas, dos pitchadores e muluquentos. Entendi tudo.
Se é verdade inequívoca que o tom dominante é machista, não há também como deixar de reconhecer que nesta zona de alegria não houve brigas, não senti a presença de bandidos ou gangs aterrorizantes e tudo era aceitavelmente neutro. Também fiquei sem entender o sentido divisório de bailes “funks A” e “bailes funks B”. Se os “As” são os dos ricos, e “Bs” dos pobres, ali não dava para delinear frações. Democracia. Havia de tudo e todos eram mais iguais que em outros lugares. E sabe que não é caro. Sequer as bebidas são fora de tabela. E a luz é tão bem planejada que a feiúra do local não aparece. De brinde, imaginem, banheiros limpos.

No espírito da “casa”, entendi o sentido da felicidade urbana carioca. Politicamente incorreta, antifeminista, sem nenhuma sofisticação, este é um ponto fundamental para quantos querem conhecer a intimidade carioca e nela entender um pouco mais de uma cidade que se mostra diferente dos cartões postais. E viva o funk que só poderá ser compreendido nos lugares que lhes são próprios. No Rio de Janeiro.

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