Dia destes, estava
na Biblioteca Nacional fazendo pesquisa sobre a tradição
oral dos botos amazonenses quando mexendo no catálogo
manual encontrei referência a um livrinho que havia
lido há muito tempo: “Euclides da Cunha em
Lorena”, de autoria do Dr. Gama Rodrigues. A publicação
da Faculdade Salesiana de Ciências e Letras de Lorena,
de 1952, caiu-me como um presente como, aliás, ocorre
de quando em vez em investidas a bibliotecas, arquivos e
sebos. Anotei o número do index e pedi o texto que
logo estava em minhas mãos.
Era um exemplar pouco visto, ainda com algumas páginas
coladas e isto me dava sensação de redescobrir
mundos. Tendo escrito tempos atrás sobre o mesmo
tema senti, contudo, emoção nova. A surpresa
veio na medida do desejo de rever temas ligados ao Colégio
São Joaquim. Confesso que havia algo de maroto em
minhas lembranças, pois estudante daquele internato,
sempre via maravilhado a mesa, a cadeira e os móveis
do escritório daquele “monstro da literatura
brasileira”. E ficava encantado com a sobriedade da
“Sala Euclides da Cunha” inaugurada nos idos
de 1952. Havia mesmo algo de litúrgico na contemplação
do material.
Lembro-me inclusive do olhar grave do padre Leôncio,
repetindo que ali, naquela mesa, tinham sido revisados os
originais d’Os Sertões. Devorei as páginas
do escrito que fora apresentado quando da inauguração
da Sala. Filtrei as palavras ajuizadas do Dr Gama Rodrigues
e constatei que não há como deixar de lado
o preconceito que levava o admirador de Euclides a declinar
insinuações sobre o fatídico caso de
amor que colocou termo trágico na história
da família da Cunha.
Tendo residido em Lorena entre 1901 e 1903, funcionário
público lotado no cargo de Engenheiro Chefe do Segundo
Distrito de Obras Públicas, apesar da sede ser em
Guaratinguetá – onde projetou e acompanhou
a construção da Ponte do Pedregulho –
Euclides preferiu morar em Lorena onde seus filhos poderiam
estudar no colégio dos padres salesianos.
Dr. Gama Rodrigues descreveu o engenheiro e escritor com
palavras cortantes, como quem entalhava madeira resistente:
“estatura média, tez morena, cabelos duros,
lisos e negros, desengonçado nas atividades, brusco
nos gestos, desarranjado no trajar”. Tantos “qualificativos”
mostravam um Euclides estranho ao meio, soberbo e áspero
“neurastênico, arrogante, metido a saber de
tudo, de difícil prosa”.
As dificuldades da personalidade do perpetuador das façanhas
de Canudos se estendiam à família e assim
filhos e mulher, a belíssima Ana Ribeiro, mãe
de três meninos, seriam uma espécie de vítima
do gênio amargo.
Ana, descrita como vivaz e dona de exuberância carioca,
fora mostrada como pessoa “alegre, risonha, comunicativa”.
Não sem uma pitada de maldade, Dr. Gama Rodrigues
destacava o prazer de Ana que “gostava de conversar,
sobretudo com os homens, largas conversas ruidosas, abordando
todos os assuntos, embora, sempre pela rama”.
De maneira surpreendente, o opúsculo deteve-se nas
questões do relacionamento do casal. Situações
periclitantes e brigas públicas apontadas e a mostra
de uma mulher fútil, que gostava de roupas de cores
fortes, perfumes caros e chamativos, ambientavam uma situação
que mais tarde iria terminar na grave troca de tiros ocorrida
com um amante dela, depois da volta de Euclides ao Rio,
na Estrada Real de Santa Cruz.
Ao dizer que em um determinado baile Ana fora em companhia
do marido e que “apesar de mãe de três
filhos, dançou toda a noite, com visível e
agoniada contrariedade do marido” semeava a base do
que seria o desfecho da vida do casal. A picardia do Dr
Gama Rodrigues salientou que a “cada vez que ela enlaçava
um novo par, para mais uma valsa, ou mais uma polca, Euclides
sentado a um canto, taciturno e desolado, esfregava as mãos
em desespero e reprovação”. Essa visão
fortalece a hipótese de que os anos vividos no Vale
do Paraíba extremaram as diferenças do casal
e foram fundamentais para que a morte de Euclides da Cunha
fosse uma espécie de epílogo de desamor.