Espelhos (clique)

Por: José Carlos Sebe Bom Meihy

Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa
Mestre JC Sebe nos traz uma reflexão a respeito da troca do interesse geral pelas questões do indivíduo e de seus direitos exclusivos que, diante da ausência de regras, acaba-se delegando decisões que resultam em obedecer sem discussão.

 


A lógica moderna é sempre um desafio para quem insiste em ser tolerante, quando não concorda com o que está prescrito como norma ou conduta. Sem argumentos contrários, ou carente de opinião pessoal sobre o que é “justo” ou “injusto” tudo fica muito raso e isto permite sentir que somos um rebanho de obedientes que não contestam moralidade das leis. Duvidando dos pressupostos comportamentais, coleciono algumas historinhas que não se explicam sem arranhões que se fecham em absolutos.


Em nossos dias, tudo está muito convencional, racionalizado sem critérios sensíveis ou questionadores das variações. Lembro-me de uma frase clássica do Millôr Fernandes que pontifica algo dramático “A justiça é igual para todos, aí já começa a injustiça”. A neutralidade desejável, contudo, ganha contornos trágicos quando se abre para pólos que se extremam e se situam no simplismo do “certo” ou “errado”.


Os lugares das dúvidas, dos meios-termos, ficaram esvaziados e até perdem lógica no “sim” ou no “não”. Eu particularmente não aceito sem restrições o “claro” ou “escuro”. Sinto que há fatalmente um possível “entretanto”, algo que não radicaliza resultados e que leva em conta fundamentos subjetivos, motivações justificáveis. Talvez por existir pessoas que ainda prezam o “não é bem assim” ou o “será que não poderia ser diferente”, os debates em torno da ética experimentam uma ressurreição. Mas deixemos a teoria e vejamos situações algumas práticas.

 

A lenda

Há uma lenda urbana que me perturba faz tempo. Conta-se que em uma padaria, apenas um serviçal prestava atendimento a uma longa fila de clientes que, basicamente, se alternavam na compra de queijo e/ou presunto. Pois bem, a intermitência dos dois segmentos de clientes provocava demora visto que ora era um produto a ser cortado, ora outro. A variação implicava tempo e prejuízo para todos. Num rompante, irado, o serviçal teria gritado: “vamos fazer duas filas, uma para o queijo e outra para o presunto”. Obedecido em sua autoridade de controlador dos produtos, tudo ficou prático para ele que atendia, mas para o pessoal que estava na fila, a espera do outro produto demorava muito mais.


Que fazer no caso; quem ganharia com a organização daquele caos? Estaria certo o empregado da padaria que, para facilitar seu trabalho, racionalizou de maneira eficiente o atendimento? Haveria um meio termo capaz de agradar os clientes das duas filas? Em termos de vantagem, quem seria o grande beneficiado? Não dá para desprezar a vantagem gerada para a fila que escolheu o produto que estava à mão do empregado no momento da decisão.


Mas seria correto para os demais que buscavam o outro produto? É verdade que ao fim e ao cabo, haveria uma compensação geral, pois a economia de tempo e de energia despendida na troca do queijo para o presunto reduziria a jornada de trabalho do moço. Sabe-se, contudo que a visão de conjunto é mais teórica do que prática. E um dos pecados da modernidade é justamente a noção de coletividade

 

Desafio

A consideração deste caso convoca nosso juízo que é desafiado a considerar a importância da ética no reino humano. Sempre somos chamados a opinar e o fazemos em termos dos interesses pessoais, imediatos. Talvez, o grande problema da modernidade seja o encurtamento do compromisso com o amplo. Isto implica na troca do interesse geral pelas questões do indivíduo e de seus direitos exclusivos. Mas, quase sempre, frente à regra não discutimos sua legitimidade e assim delegamos a outros as decisões e assim, pouco mais resta que obedecer sem discussão. Esta mensagem é pois dirigida especialmente àqueles que em tempos modernos não querem apenas pensar que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. Há mediações.

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