Dizem que à noite todos os gatos são pardos. É comum se ouvir que o panorama visto da ponte é harmonioso e irretocável. Nelson Rodrigues afirmou que de perto ninguém é normal. Foi com estas chaves que filtrei impressões de amigos que vivendo no exterior enxergam o Brasil por lentes telescópicas. Tudo motivado pela fome de saber sobre o momento político que nos acomete no presente. Preciso dizer que os saudosos e queridos confrades forçaram o tema que, aliás, não condizia com a tarde quente do verão barcelonês, nas Ramblas movimentadas. De toda forma, foi lá que aconteceu o encontro que enlaçou as atualizações gerais. Nunca duvidei que, com acadêmicos espanhóis, minha proposta de relaxar seria provisória, pois afinal, bem conheço a retórica catalã e o envolvimento progressivo em temas sempre enviesados pela política. E não deu outra, pois em poucos minutos estávamos no mar tumultuado dos debates, sobre o impacto da nova reputação do Brasil no mundo.
Confesso que o ritmo dos argumentos apresentava o outro lado da moeda que negocia nosso lugar internacional até pouco tempo exemplar e digno de nota. No Brasil, a sucessão vertiginosa de fatos sempre tão arrebatadores não tem permitido reflexões sobre o significado da queda do nosso prestígio em nível global. As notícias que nos chegam de fora, sempre em termos econômicos, negligenciam opiniões que não sejam das decantadas críticas aos rebaixamentos promovidos pelas agências de classificação. Foi assim que percebi a perplexidade que perturba o entendimento estrangeiro.
Sinceramente, precisei refazer caminhos e voltar à superação do momento politico pós-militar para dar algum sentido às explicações sobre nós. É verdade que a expressão “complexo de vira-lata” fora criada por ocasião do sucesso na Copa do Mundo de 1958, mas com o advento da Ditadura descemos muitos degraus na respeitabilidade democrática internacional. A gestação da positividade foi longa e precisou do ressurgimento do respiro político-partidário dos anos de 1980 para que despontássemos como democracia digna. Mas ressurgimos flamejantes.
O Brasil que floresceu no andamento eleitoral foi altivo, em particular com nova liderança. Mal se sabia dos custos ocultos e corrosivos causados pela perversa corrupção que, na surdina, solapava nosso chão político. De toda forma, no céu global brilhava uma estrela partidária que nos projetou juntamente com o nome de um sindicalista, vindo das camadas mais pobres da população. Foi assim que nos erguemos como exemplo mundial. E fomos longe. Talvez, longe demais. Tão alto subimos que, denunciados os escândalos milionários, a queda foi vertiginosa. Demais. E, se nós mesmos não a entendemos, que dizer dos estrangeiros.
Antes de tentar alguma explicação, precisei ouvir os argumentos dos interlocutores. O suposto da Constituição ferida e a ligação com o golpe veio colado à lógica dos fatos, pois afinal, na Europa em geral, a obediência à Carta Magna é dever sagrado e a nossa, também, preza a solidez das eleições. Outro aspecto expoente foi a supremacia do Poder Judiciário, comprometendo dramaticamente o equilíbrio do Legislativo e o Executivo. Não bastasse isso, presidia ainda a dúvida sobre o exclusivismo persecutório a um partido prioritário. Racionalizado o problema, decodificado os argumentos, me restou pouco: trata-se de um golpe.
Não ocultei meu posicionamento, tentei expressar pesares, sensibilizar os ácidos interlocutores. Confesso que me surpreendi comigo mesmo, pois mesmo afinado com a crítica, tentava demonstrar a motivação da classe média brasileira. Ouvi em resposta que o ocorrido no Brasil era consoante a um momento conservador mundial, a reacomodação das camadas dirigentes que ainda não aceitaram os efeitos populares das classes emergentes. Por lógico, tive que ouvir os comentários e, por um momento emprestei os óculos dos amigos e pude reafirmar meus propósitos locais.
Ah, devo dizer que a cerveja estava boa, tanto que precisei de algumas para não perder a alegria de ser brasileiro visitando amigos preocupados com o Brasil.