Mestre José Carlos Sebe Bom Meihy dedica ao amigo Evaldo Amaro Vieira a primeira de uma série de crônicas que serão produzidas semanalmente (foto da fanfarra nas escadarias do antigo Estadão, em 1960)
Muito se tem falado em memória. Como tema de conversas corriqueiras, se evocam lembranças, reminiscências, recordações, tudo emblemado no conforto dessa palavra, memória. Mais solene, vezes há em que se apela para a memória como reverência aos mortos e, então, um latinzinho nos socorre para significar saudade: in memoriam…
Gosto do composto internado na alusão aos antepassados, pois, no caso, memória é a extensão do tempo, das sensações que existem quando fisicamente o ente amado não está mais junto de nós. E eu sou, posso dizer, um colecionador de saudade. A complicar tudo, porém, repontam os estudos acadêmicos sobre “memória”, e então os conteúdos se complicam, exigindo desde definições biológicas do que é memória, até suas intrincadas acepções sociológicas, tão em voga nas ciências sociais. Nesse caso, aliás, são replicados estudos sobre memória: individual, coletiva, social, cultural, política.
Sinceramente, precisei deste introito todo para falar de algo que me comove. Explico-me…
Esqueleto do Taubatherium, animal pré-histórico que vivia no Vale
Não sou exatamente dado a participar ativamente de redes sociais. Por lógico, como pessoa do meu tempo histórico, não tenho como deixar de compor listas de parentes, amigos, profissionais, e até de partido político. Tenho enorme orgulho de dizer que não sou viciado nisso, não integro a relação de quantos não conseguem viver sem suas maquininhas ligadas. Faço uso parcimonioso e permito-me, orgulhosamente, situar entre os comedidos. Uma das lições que tenho exercitado na posse de um smartphone (sim, é dessa forma que se escreve corretamente, caso contrário, aportuguesado, seria “esmartefone”) é, ironicamente, algo decorrente dos multiplicados “estudos sobre memória”, ou seja, a seletividade. Aprendi, por exemplo, a relativizar mensagens de ódio político, resignar-me frente a amigos amados que têm percepções extremadas sobre personagens que me são relevantes. Os ganhos são imensos. Juro.
Cauby Peixoto canta no TCC acompanhado por Walter Arid no final dos anos 1950
Tudo isso para dizer que um belo dia, faz mais de um ano, fui convidado para ingressar em uma rede de amigos da juventude. Foi o que bastou para se abrir em mim um compartimento enorme, esvaziado pelo corre-corre da vida, pela luta docente, pelas responsabilidades familiares. Foi surpreendente o tamanho do espaço que me permiti internamente. E como foi bom, pois de repente verifiquei que o passado não passou, que tudo está vivo, levemente adormecido na latência explicativa do melhor de mim. E tudo se apresenta com promessas de despertares perfumados. Sim, há algo de poético nessa evocação. Se cabe poesia, há também ambiente para o sentido épico da vida. Ao longo dos dias, a tal lista foi se ampliando e, creio, hoje se aproxima de 100 amigos. São 100 detalhes de esquinas de afetos, dobradas em favor do que sou hoje. Ninguém passou ileso na constituição do que me tornei. Ninguém, nem nada.
Baile das Debutantes no TCC, início dos anos 1960
Por lógico, meu lado historiador não tem como deixar de lado este fenômeno. O tempo, senhor da razão, como diziam os helênicos, vai dando forma e permitindo explicações sobre tudo. E, de maneira mágica, vamos entendendo os rumos de uma geração toda; da minha geração. Meninos e meninas do interior paulista, integrantes de uma classe média que se inaugurou no Brasil pós Segunda Guerra Mundial, ao longo dos anos fomos nos imiscuindo na vida nacional, cumprindo diferentes papeis, assumindo postos. Grosso modo, pode-se dizer que presidiu uma diferença: os que ficaram e os que saíram. Essa bifurcação prática, angula um vértice fatal: o que significou nosso passado de jovens que tiveram suas trajetórias perpassadas por uma longa ditadura civil/militar? Como nossas experiências de caipiras, interioranos, taubateanos, teriam moldado comportamentos e nos colocado em pautas mais amplas, nacionais?
Chafariz que existia no Bosque (praça do Eletro) e que desapareceu
A identificação geográfica de onde estamos diz muito. Referencial exigente, a mera constatação dos sítios de residências atuais diz muito de nossos destinos. Espalhados pelo Brasil afora, é fácil constatar não apenas os desempenhos profissionais, mas muito mais do que isso, a permanência das fontes que animaram nossas vidas nos tais “anos dourados”. O mais espantoso nesse enredo é que não descuidamos de nossos dias de rapazes que fomos. É quando, então, são recordados velhos professores, personagens das lendas urbanas, parentes queridos, festas e celebrações, jogos esportivos e bailinhos. Tudo iluminado por transparências idílicas, fantasiadas de alegria e conforto. Espantoso: exilam-se os vestígios de dores, de arranhaduras preconceituosas, falhas de rejeições. Tudo vira uma legenda de saudade e ganha a graça que precisamos para sobreviver. É exatamente aí que reside a sedução da lembrança.
Quando deixamos de fazer história para dar vivacidade à memória, perdemos o significado do racional, e em troca reinventamos as delícias do que poderia ter sido. Meditando sobre estas coisas todas, entendo agora o teor do termo saudosismo e me deixo levar… Levar e lavar a alma…