Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais (Chico Buarque)
Como muita gente, ando comovido, mais sensível e até me sentindo à beira de uma crise de nervos. Motivos não faltam, nem a mim, nem a ninguém. Todos vivemos sob um denominador comum que nos autoriza creditar culpa às tristezas políticas, descrenças cidadãs e mesmo arrolados na avalanche de frustrações engrossadas pela fartura de desilusões públicas, escândalos e golpes. Estamos abatidos e, o que é pior, irremediavelmente contaminados, divididos em partes que se odeiam. É claro que na moral judaico cristão em que vivemos, sempre há aqueles que evocam Chico Buarque e entoam o alentador “vai passar”. Que os almejados melhores dias venham logo, mas enquanto não chegam, vamos procurando cá e lá algumas sementes que fecundam alívios.
Posso estar enganado, mas na busca de compensações, noto que amigos têm se acercado mais, pequenos afetos são refeitos, carinhos próximos são recosturados. Tomara que esteja certo, pelo menos nesse quesito. Tomara. Essa eventual busca, aliás, é boa, não resta dúvida, ainda que, muitas vezes, no coletivo se sinalizem atos que dimensionam a violência das pressões acumuladas.
Fábio Assunção no chiqueirinho do camburão policial pernambucano, em junho
Foi pensando nisso que contemplei a polêmica causada por atos noticiados envolvendo o ator Fabio Assunção, em recente apresentação feita no Recife onde foi participar da estreia do documentário “Samba de Coco”, produzido por Pally Siqueira, sua companheira há mais de um ano. Depois de muita bebida, mediante assédio incontido de fãs, o ator se envolveu em brigas com moradores e policiais. Preso em público, recluso em carro da delegacia, filmado em cena humilhante, foi liberado depois de pagar fiança de cerca de R$ 9 mil. Não bastasse o vexame divulgado nacionalmente, as redes sociais foram inclementes, atacando-o, execrando sua atitude criticável sim, mas demandando outros critérios. É lógico que a condenação tem fundamento e que ele, como figura conhecida, merecia sanções, mas reclama-se dos modos de divulgação e do vazio de argumentos ou análises do fato. A piorar o quadro pessoal do ator, seu nome profissional foi comprometido periclitando tudo. Mais armas para um público ávido de escândalos, principalmente envolvendo celebridades.
Em satisfação exigida pela TV Globo, o ator de 45 anos declarou “Peço a todos sinceras desculpas. Não é fácil, mas reconhecer meus erros e procurar sempre aprender com eles é o que eu desejo” e disse mais “Lamento muitíssimo o ocorrido em Arcoverde. Era uma noite de celebração. Tínhamos acabado de exibir nosso documentário filmado no sertão pernambucano no palco principal do festival de São João. Então fomos com a equipe confraternizar e a situação saiu do controle. Infelizmente aconteceu uma briga”. Dado seu histórico pessoal, o próprio Assunção além de declarar que assumiria as despesas, pediu “um exame toxicológico para ser comprovar que não usou drogas ilícitas”.
Pouco antes da prisão, transtornado com o assédio de fans
É exatamente esta passagem que me moveu a apresentar-lhe minha solidariedade irrestrita. É fácil julgar e sem contextuar casos específicos cabe ilações imediatas e sempre condenatórias. Mas quem imagina a luta de um drogado contra suas escolhas anteriores? Quem sabe o que é tentar fugir de um vício tão forte como o da dependência química? E que dizer quando o problema deixa de ser privado e se torna uma questão condenável exemplarmente, vista apenas como ato delinquente?
Acordemos: a dependência química em suas variações é um dos maiores problemas da atualidade. Em todas as linhas, ela atua movimentando o mundo dos negócios clandestinos dando via a carteis internacionais, se formulando como um dos três mais nutridos comércios da atualidade. E que dizer dos efeitos da droga na vida das pessoas, de seus familiares e demais correlatos? Vivamos com um dependente crônico para saber de seus caminhos. Não vale apedrejar sem ter em mira algum ato construtivo.
Somando tudo, prefiro creditar na conta do cansaço as maledicências todas e mesmo não tendo muita esperança rezo para que haja compreensão maior. Talvez, o exercício de aceitação nos permita cantar o refrão final do Vai Passar: “Ai, que vida boa, olará/ O estandarte do sanatório geral/ Vai passar”.