Em 10 de dezembro de 2008, foi lançada na China a Carta 08, onde se afirmava que os cidadãos chineses, cada vez mais, reconheciam a liberdade, a igualdade e os direitos humanos como valores universais. E que a democracia, a república e uma constituição constituíam um arcabouço básico para um sistema político moderno. Ao questionar o processo de modernização na China, que ignora e desrespeita estes princípios, denunciavam-no como algo “desastroso”, pois “priva os homens de seus direitos e destrói a sua dignidade”. Indagavam-se os que subscreviam o texto para onde estaria caminhando a China no século XXI. Continuaria prevalecendo a modernização autoritária? Ou haveria o reconhecimento dos valores democráticos?
Manifesto “publicado” na China, traz Liu Xiaobo na capa
Trezentos e três intelectuais e ativistas assinaram a Carta. Nos dias e meses seguintes, cerca de 8 mil pessoas fizeram o mesmo, homenageando com o título um outro texto, publicado em 1977 por algumas centenas de intelectuais tchecoeslovacos que criticavam o estado de exceção em seu país.
A Carta 77 foi proibida de circular. Os que a assinaram, e suas famílias, foram perseguidos, alguns aprisionados. Todavia, nada impediu sua difusão. Era passada de mão em mão, murmurada nas esquinas, segredada nos bares e nas alcovas, não houve jeito de extirpar aquele veneno. Doze anos mais tarde, uma de suas principais lideranças, Vaclav Havel, escritor e dramaturgo, tornou-se presidente do país, eleito pelo voto dos cidadãos.
Cerca de 30 anos depois, Pekim reagiu com a mesma fúria contra os pacíficos defensores dos valores democráticos da Carta 08.
Liu Xiaobo não abriu mão de suas convicções, apesar de toda a violência que sofreu
Sobre um de seus principais ativistas, Liu Xiaobo, arrebentou a ira dos governantes. Ele era um velho conhecido da polícia política. Em maio de 1989, quando das manifestações democráticas da Praça da Paz Celestial, embora lecionando, a convite, nos Estados Unidos, acorreu ao seu país e fez o possível para construir mediações entre os estudantes e as autoridades. Em vão. Identificado aos rebeldes, logo depois massacrados, Liu entrou na alça de mira da repressão, ganhando uma pena de dois anos, até 1991. Contudo, não o dobraram. Pegou, então, uma segunda condenação, em 1995. E uma terceira, de três anos, entre 1996 e 1999.
Recuperando a liberdade, aquele homem de aparência frágil e de sorriso irônico e triste, fiel a suas convicções, continuava o mesmo, não se emendando e não se curvando. Queriam enterrá-lo vivo, como a tanto outros? Não o conseguiriam.
Tornou-se, então, um dos principais articuladores da Carta O8. Quando o texto veio à luz, foi novamente preso. Um ano depois, outra condenação, desta vez a onze anos de prisão e mais dois de privação de direitos políticos. A pena suscitou um escândalo internacional. No contexto de um amplo movimento de solidariedade internacional, Liu ganhou, em 2010, o Prêmio Nobel. Os governantes consideraram a premiação uma “obscenidade” e apertaram ainda mais as cravelhas, submetendo a controles irrespiráveis sua mulher, a poeta e fotógrafa, Liu Xia, e toda sua família. Um dos irmãos dela pegou uma pena de 13 anos.
Armou-se uma queda de braço. De um lado, um homem só, no calabouço, apenas com suas palavras e pensamento. De outro, a poderosa ditadura chinesa, chefiada pelo honorável Xi Jinping, que passeia sua impassível catadura pelos cenáculos onde se encontram os grandes deste mundo. Em determinado momento, Liu teve a oferta da liberdade, em troca de uma autocrítica em boa e devida forma. Recusou-se. A liberdade, só a aceitaria sem condições. Não a teve. E pagou com a vida por sua firmeza.
Nos últimos meses, vitimado por um câncer, o regime autorizou sua transferência para um hospital universitário. Entretanto, ele não teria sossego nem mesmo à sombra da morte. Impotente e incapaz de dominar e controlar as ideias e a vontade de Liu, o governo devotou-se a controlar o seu corpo e o fez até o fim. Já o corpo morto, organizou seu funeral e cremação. Foi uma atitude patética, cruel e obscena. E aqui, sim, o termo corresponde às evidências.
No livro sobre a vida de Galileu, B. Bretch atribui ao seu personagem a melancólica ideia de que “infeliz é a terra que precisa de heróis”. É presumível que Liu Xiaobo concordasse com a frase, pois, pelo que disse e fez, e pela maneira como dizia e fazia, nunca se investiu na solenidade de alguém superior. E é provável que se ofendesse se quisessem entronizá-lo como tal, pois sua figura magra e seca era, de fato, a antítese do herói. Mas, agora, que ele não está e nunca mais estará entre nós e as cinzas de seu corpo foram jogadas ao mar, é impossível não perceber que suas ideias – e seu exemplo de vida – continuarão inspirando e provocando admiração. E por isso mesmo, não sendo o herói de terra alguma em particular, o destino e as opções de Liu tornaram-no uma legenda e, assim, ele virou, a despeito de si mesmo, um herói do nosso tempo.
Daniel Aarão Reis
Professor de História Contemporânea da UFF
Email: daniel.aaraoreis@gmail.com