Para o cronista, abordar datas que se repetem na rotina dos calendários implica achar atalhos originais, esforço para não ser maçante ou repetitivo. Dizer algo que certifique a comemoração, mas que, ao mesmo tempo acrescente algo demanda cuidados. Uma das demandas remete às celebrações em datas redondas como 10, 20, 25, 30, 50, 75, 100 anos…
Como se fossem apelos emocionais obrigatórios, a retomada de certos eventos se presta a cultos que tanto servem para reafirmar como evidenciar equívocos. Em um ou outro ponto, os aniversários se justificam para solidificar laços pessoais, de grupos, religiosos ou civis, com vocação coletiva. Muito das construções identitárias ou de comunidades se rende a tais rituais. Importante marca dessas cerimônias se expressa pelo esforço de quebra de rotinas na essencialização de fatos. Tudo como se houvesse permissão para acontecimentos do cotidiano se firmassem como fora da curva rotineira. Talvez, o mais expressivo exemplo disso seja o “dia das mães”. O cotidiano materno, por certo e como tantas outras exaltações natalícias, se opera no dia a dia, mas a definição de uma data “específica” ratifica e sublima o mito desse afeto inigualável. Por certo, o comércio se beneficia disso, e de igual monta se percebem cultos religiosos exaltando tradições, algumas inventadas recentemente.
Ainda que se pense que, por exemplo, o amor materno seja inquestionável e irrestrito, eterno e universal, sabe-se que sua invenção é bem mais recente. Aliás, convém lembrar que como qualquer sentimento, o amor – em todas as suas formas – não responde a posturas inata ou manifestações determinadas biologicamente. Os sentimentos também têm histórias e é suscetível a condicionamentos culturais, segundo lapsos de tempo e circunstâncias espaciais. Uma autora importante pela valentia, Elizabeth Badinter, por exemplo, escreveu um livro polêmico, daqueles que queimam mentes de leitores, questionando o “mito do amor materno”. Lembrando que houve épocas, recentes mesmos, em que as crianças depois de nascidas eram legadas às criadas e retornavam aos seus lares com cinco anos de idade, tudo se tona explicativo de culturas e épocas. A noção de família, na realidade, começou a mudar com a caracterização da burguesia, a partir do século XIX.
Valendo-me do mesmo mote, fico imaginando o significado interno de reflexões sobre a paternidade. Por certo, os livros religiosos e toda a literatura de um período, bem como a história, se rendem a releituras e interpretações. No caso do cristianismo, a redefinição do papel familiar implicou a noção de Sagrada Família para servir de norma forjadora de padrões úteis depois da revolução industrial. A mãe, modelada pela Virgem Maria, seria sinônimo de afeto invariável, comum a todas as mulheres. São José, o bom senhor que serviu de pai, representaria o provedor, homem zeloso pela honra da mulher e sustento da casa. O filho – leia-se também no plural, “os filhos” – selaria a unidade que, afinal, é a base de qualquer sociedade moderna e unidade econômica. Frente a precariedade de estudos históricos que insistam na desconstrução de pressupostos fixos, persiste a resistência de valores assumidos como inquestionáveis ou dogmáticos. Valeria sim aprofundamentos históricos na questão, mas, mesmo que à flor d’água, é oportuno colocar alguns pontos que se mostram pertinentes a responder sobre o sentido da paternidade hoje.
Casal homoafetivo com seus três filhos
Em vez de simplesmente retocar os mesmos denodos exaltativos da paternidade, cabe inscrever alguns pontos fundamentais. Nos dias atuais, frente a emersão transformadora do papel da mulher na sociedade, como ficam os papeis paternos? Não apenas considerando os avanços femininos e a decolagem feminista, mas levando-se em conta a relativização do papel do casamento, qual o peso das tradições patriarcais que, queiramos ou não, ainda desafiam um padrão de masculinidade? E a chamada revolução sexual, com a flexibilização do binarismo homem/mulher teria algum impacto no perfil paternal? Pensemos, a guisa de provocação, nos casais homoafetivos e nas aberturas legais para adoções? Será que o que se comemora como “dia dos pais” agora encerra o mesmo teor do passado recente? Ou que devamos aceitar o feminino também cabível como paterno. Tenho amigas casadas, lésbicas, e em um desses casos, um componente da unidade familiar quer festa e presente dos filhos, há como não respeitar?
Casal homoafetivo com com a filhinha
Parece questionável também pensar no significado da coleção de mudanças na educação dada ou permeada pelos pais. Suponhamos diálogos de pais e filhos sobre as orientações sexuais em geral. Ou sobre o uso de drogas. Que tal falar de aborto com os filhos? Ou de relações abertas? Sem uma nova ética, atualizadora de diálogos não há como se pensar na paternidade além das festinhas e presentinhos tolos. Ser pai hoje requer capacidade de negociação e valentia na discussão de papeis e funções domésticas. Talvez, portanto, o melhor presente que se possa pensar para os pais modernos seja a veiculação de uma nova ética.
Feliz dia dos pais a quantos se dispuserem a pensar nos filhos sob os padrões de hoje.