Pois é!… de repente estive implicado em uma polêmica danada. Antes de historiar o caso, deixem-me evocar razões que explicam o contexto
Participo de uma rede social com amigos, colegas, parceiros de minha geração. Trata-se de uma rede com o precioso nome “Taubatherium” que se tornou um ponto de reencontro que reúne cerca de 70 (ex-jovens), pessoas que viveram seus dias de mocidade no interior do estado de São Paulo, na aconchegante, mas complexa cidade que, afinal, como diria Olavo Bilac é um mezzo del camin. Situada entre as ondas da orla “ubatubana” e curvas serranas que determinam um vale; entre a capital São Paulo e a fronteira com o estado do Rio de Janeiro, está a comunidade que é reverenciada como nossa eterna capital sentimental, paraíso achado na memória de um recorte geracional. É óbvio que o poeta no soneto precioso que evoca o meio do caminho, entre o nascimento e a ameaça da morte, se referia ao tempo tramitado da juventude à velhice, das lembranças idílicas ao triste declínio etário. Junto aqui as duas coisas: o ponto médio geográfico e a passagem dos anos apontados para a fatalidade do futuro inexorável. E acrescento um fermento quase filosófico: quem somos?
Urupês foi o primeiro livro de contos de Lobato, em 1918
Faz parte do sistema identitário de qualquer taubateano um dúbio sentimento que tramita entre o orgulho e a vergonha. Ser taubateano centraliza um dilema ampliado que Shakespeare teatralizaria como “ser ou não ser caipira”. O tema guarda complicações capazes de fomentar tratados, pois tanto pode ser positivo, motivo de orgulho, como pode humilhar interlocutores. É verdade que experimentamos em escala maior a mesma ambiguidade ao deparar com conversas em que nós mesmos, na intimidade de grupos, falamos mal do Brasil, mas se a referência resulta de estrangeiro, viramos o mais empedernido defensor da pátria amada, mãe gentil. Com ímpeto aproximado dessa polarização, se reage frente ao termo “caipira”.
Amacio Mazzaropi encarnou o Jeca Tatu no cinema
Diria que dois taubateanos deram a medida da discussão paroquial. Em uma ponta, Monteiro Lobato chamou os habitantes do entorno de “piolhos da serra”, seres decadentes que não cantam, não lavram, doentes, parasitas que viveriam de cócoras. O termo se alastrou e ganhou brilho na medida em que Lobato se tornava personalidade pública e é, até hoje, um dos dez autores mais conhecido da nossa literatura. Na outra ponta temos o bardo Renato Teixeira que assumiu – para gaudio geral – Taubaté como sua sede sentimental. Ao dizer na antológica Romaria “sou caipira pirapora” e saudar Nossa Senhora como padroeira, fica exibida a resposta aos detratores. E convém lembrar que Romaria é uma das dez músicas mais conhecidas do nosso farto repertório.
Renato Teixeira visita o Museu Mazzaropi, em janeiro de 2012
Para quem está de fora, este é um debate pode ser aquilatado como complementar, sem maiores consequências, mas, filtrado pela rede social de meus conterrâneos, virou debate candente, ponto de honra. Cá e lá, entre milhares de outros temas, volta a questão da “caipiridade”. Ainda que discretamente, acompanho com atenção os temas filtrados por opiniões diversas. Foi assim que, na semana passada “rolou” uma conversa sobre o assunto. Eu estava em Curitiba onde havia ido para encontros acadêmicos. Ocorreu-me perguntar sobre a amplitude do termo caipira. Instigado por outros participantes do grupo, resolvi tirar uma prova do caso. Em reunião com cerca de cem alunos universitários, antes de minha apresentação, perguntei para a plateia: seria aplicável ao estado do Paraná o termo caipira? A plateia foi unânime ao levantar braços. Em seguida, perguntei se alguém se sentia caipira e… e… e, ninguém se assumiu. Estava, então, dado o sinal de largada para mais um mergulho identitário: que raio de pertença temos? Caipira é o outro, sempre? E o pessoal de Taubaté, tem que se definir caipira e ostentar sua condição? Não seria um jeito enfrentar o mundo e exibir vigor no conteúdo da expressão? Pronto, está colocado o caso a um aprofundamento convidativo, a necessária vocação conceitual da cultura caipira.
“Caipira picando fumo”, quadro de Almeida Júnior, 1893, retrata o caipira branco
É claro que muitos autores importantes já trabalharam na caracterização do tema, mas falta ainda quem (re) coloque a questão a partir do ponto de vista local. Visto assim, pergunta-se do significado das instituições de ensino e pesquisas que se situam em uma cidade que tem duas universidades, além de faculdades isoladas e muita gente falando sobre a matéria. Mas também, e de forma peremptória, indaga-se da comunidade em geral, pois, recobrando Bilac, é preciso determinar qual nosso lugar no meio desse caminho.