Ministro do STF e ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes declarou na sexta-feira (20), durante uma palestra na Escola Paulista de Magistratura, em São Paulo, . que a novela A Força do Querer, da Rede Globo, glamourisou o crime organizado

O ministro criticou a abordagem da produção, direcionadas, principalmente, no enredo da personagem de Juliana Paes, Bibi Perigosa. “Mostra aqueles bailes funk, fuzil na mão, colarzão de ouro, mulheres fazendo fila para os líderes do tráfico, só alegria. Aí mostra a Bibi, que se regenerou, ela tentando procurar emprego e não conseguindo. Qual é a ideia que é dada? Que é melhor você não largar. Enquanto você não larga, você está na boa. É uma valorização”, criticou Moraes.

Na quinta-feira, 26, Eugênio Bucci, colunista do Estadão e professor da ECA USP a crônica que pode ser considerada uma resposta ao ministro e toda uma corrente moralista que insiste em promover de alguma forma algum controle da liberdade de imprensa. Confira:

Em defesa da telenovela

Quem glamouriza a criminalidade não é a Bibi Perigosa, são as autoridades gatunas

 *Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo

O furor conservador – horror opressor – que vai dominando o imaginário nacional deu agora de atacar também as novelas de televisão. A pretexto de defender os bons costumes da família brasileira, os moralistas investem contra esse que é um dos pilares mais tradicionais dos costumes domésticos no Brasil: a novela das 9. Na opinião deles, a ficção de TV aderiu a causas que desestabilizam a castidade pátria, promovendo o elogio a pessoas trans e a glamourização dos bandidos que traficam drogas. Esses guardiães da impoluta conduta batuta olham para a tela eletrônica e lançam seu brado: “É o fim dos tempos!”. Não se dão conta de que o “fim dos tempos” são eles próprios: com sua histeria supostamente moralizadora, desfilam como a comissão de frente das trevas. Eles não sabem, mas o mundo que querem proteger não encontrará sua morte na lascívia, mas na escuridão – escuridão da qual eles são os novos profetas.

Moraes com Temer

Ministro Alexandre de Moraes com o padrinho que o indicou para o STF

Realmente, o fim dos tempos. Até a patrulha ideológica, que antes era um mal de esquerda, se bandeou para a direita. Desfilam por aí os patrulheiros que se declaram “liberais” – mas no fundo são fascistas – e os patrulheiros que se declaram convertidos às maravilhas do big data e da inteligência artificial – mas desejam uma solução autoritária para corrigir os erros da democracia. Todos vociferem contra a telenovela em meio a uma turba virtual e ruidosa que inclui pregadores da “cura gay”, fetichistas das armas de fogo e outras variantes impublicáveis. Vivemos tempos, de fato e de direito, tenebrosos. O fim dos tempos é o fim do já precário prestígio da liberdade.

Essa aversão conservadora à ficção de TV ficou mais evidente no final da semana passada, quando a Globo exibiu o último capítulo de A Força do Querer, com expressivos índices de audiência. Sobre a personagem que era moça e decidiu virar homem – homem trans –, e para isso se valeu de injeções de hormônio e mais uma cirurgia para a remoção dos seios, a grita veio das falanges dedicadas à vigilância da libido alheia. Até aí, normal. Isso sempre foi assim, nada de novo sob o Sol. Desde sua origem, em 1951, os autores de novelas se batem contra limites do puritanismo. O beijo na boca já foi considerado um ultraje, assim como a minissaia, as cenas de adultério, o “selinho” gay, etc. O puritanismo perdeu todas. Passo a passo, milímetro a milímetro, a telenovela contribuiu para reduzir as tensões da repressão sexual e para reduzir, principalmente, a intolerância. O País ficou melhor.

Bibi com a concorrente

Bibi, a perigosa, com a concorrente

O que preocupa, enfim, não é o moralismo sexual, quase pulsional, que sempre esteve aí e sempre vai estar. Mais preocupantes são os argumentos supostamente racionais, ou mesmo intelectuais, que, a pretexto de monitorar a função educativa da telenovela, pretendem restringir, com uma axiologia disfarçada de boas intenções, o exíguo campo de liberdade a partir do qual essa modalidade de arte vem conseguindo tematizar os traços mais sensíveis do tempo, da cultura e da sociedade. No fundo, esses argumentos querem rebaixar os meios de comunicação, todos eles, a uma escola de boas maneiras, ou, em termos menos vagos, a uma imensa escolinha do professor Raimundo sem as piadas politicamente incorretas, ou seja, um imenso nada. Essa escolinha de educação moral, sexual e cívica seria o cemitério dos artistas e, desde já, paira como um presságio asfixiante sobre a ordem democrática.

Personagens

Alguns personagens da novela Força do Querer

Em que consiste a alegação de que A Força do Querer glamourizou a rotina de crimes em que vivem os traficantes de droga? Num sofisma traiçoeiro. Para os inimigos dessa novela, o tratamento estético dado às personagens envolvidas no tráfico convidaria os telespectadores a se identificarem afetivamente com agentes do crime. Segundo eles, essa identificação fará mal aos adolescentes e especialmente às crianças. Logo, qual seria a solução? A resposta, para eles, é óbvia: a solução seria dar glamour apenas para a polícia e reservar aos bandidos a imagem de párias sem carisma e sem sex appeal. Simples, não é mesmo?

Se fôssemos seguir esse tipo de “critério” estético, deveríamos banir das bibliotecas 80% das tragédias gregas e expulsar dos cinemas toda a obra de Stanley Kubrick – especialmente 2001, uma Odisseia no Espaço, pois os adolescentes poderiam cair na tentação de se identificar com o computador. A série de O Poderoso Chefão estaria para sempre censurada.

 

 

 

Bruno Mezenga (Antonio Fagundes) e Luana (Patricia Pillar)

Patrícia Pilar e Antonio Fagundes em O Rei do Gado

Esse critério é simplesmente uma doidice, mas é uma doidice contagiosa. Para refutá-lo recuperemos um pouco da história da televisão. Pelo menos desde os anos 1960 tem havido mais fragmentos de realidade na novela das 9 do que no telejornal. Em Beto Rockfeller havia cenas de rua. Em O Rei do Gado havia a mocinha que era sem-terra. Agora mesmo foi assim: no Jornal Nacional o telespectador ouvia relatos de tiroteios nos morros, mas somente depois que começava A Força do Querer é que podia ver as cenas de violência no morro. Eram imagens de ficção, sem dúvida, mas o realismo contundente, o quase naturalismo da ambientação traziam diariamente, para dentro dos lares brasileiros, lâminas virtualmente autênticas dos morros dominados pelos traficantes.

Nesse ponto, a ficção desarma as visões inerciais de algumas das contradições mais eloquentes da atualidade: desprograma imobilismos mentais e joga luzes menos previsíveis sobre temas que o Brasil precisa enfrentar e resolver. Nesse ponto, enfim, a novela de televisão vai bem.

Noilton Ramos

Vereador Noilton Ramos (PSD) é um dos moralistas na Câmara Municipal

No mais, sejamos objetivos: o que glamouriza a criminalidade não é a Bibi Perigosa, pobrezinha, mas essas autoridades que, a despeito de suas gatunagens amplamente conhecidas, seguem controlando o poder. As telenovelas têm incontáveis defeitos – a miséria dos diálogos, os enredos repetitivos, as concessões desmesuradas ao merchandising – mas o excesso de liberdade não é um deles. Pelo bem da família brasileira, defendamos essa pequena liberdade e seu tênue fio de ousadia.

*Jornalista, é professor da ECA-USP