A Caixa Econômica Federal não é banco público, mas caderneta de poupança de político
Na minha travessia da infância para a adolescência, internado no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Bodocongó, Campina Grande, Paraíba, eu morria de saudade de minha casa paterna, a 360 quilômetros de distância do seminário, em pleno sertão. E, por incrível que pareça, meu lenitivo musical ainda não era Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Jackson do Pandeiro, o bamba do coco, ou ainda Genival Lacerda, seu Vavá, o democrático senador do rojão. Mas, sim, uma canção de domínio público norte-americana que, desafinado como sempre, cantava, fazendo a segunda voz do coro nas festas mundanas do internato. Seu título: Greenfield.
Não: os campos do sertão normalmente eram ressequidos e cinzentos, nada tendo a ver com o verde da nostálgica canção folclórica dos ianques. Mas sempre me bate uma saudade dolente quando a ouço. Não tanto mais agora quando os agentes policiais e procuradores federais recorreram ao título para batizar mais uma daquelas equipes de tarefas policiais-judiciais com que se pretende por fim ao descalabro da corrupção no serviço público nacional. Informa o novo pai dos inocentes, o google, que ela foi deflagrada em 5 de setembro de 2016 e investiga um desvio dos fundos de pensão, bancos públicos e estatais, estimado, inicialmente, em, pelo menos, R$ 8 bilhões. Além da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF), também a integram a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) e a Comissão de Valores Mobiliários(CVM). O Wikipedia dá conta de que dela participam cerca de 560 policiais federais, 12 inspetores da CVM, quatro procuradores federais da CVM, oito auditores da Previc e 14 procuradores da República. A denominação, instigante como de hábito, não se refere à canção citada, mas alude a um jargão dos negócios sobre um tipo de investimento que envolve projetos iniciantes, ainda no papel.
Nesta virada de ano, os agentes da lei houveram por bem recomendar ao presidente da República que demitisse os 12 vice-presidentes da Caixa Econômica Federal (CEF), por suspeitas de corrupção na gestão do banco estatal. Por que o presidente foi incomodado para exercer uma providência normalmente adotada pela diretoria? É que, ao contrário do Banco do Brasil (BB), só para dar o exemplo mais simples e à mão, que tem sócios privados, a Caixa, não. Ela é propriedade exclusiva do Tesouro Nacional e ao presidente cabe geri-la em nome dos cidadãos, que representa por delegação dada nas urnas, além de nomear e demitir diretores e membros de seus conselhos.
De início, Temer não pareceu dar ao caso muita atenção. Até que o MPF informou da recomendação ao Banco Central e a instituição federal encarregada de gerir as transações bancárias associou-se à recomendação. Diante da resistência de Temer em atender à recomendação, os procuradores terminaram por avisá-lo de que, caso não tomasse a providência, ele poderia ser responsabilizado por eventuais atos ilícitos assinados por algum vice-presidente da Caixa pilhado em flagrante.
Michel Temer deu pouca importância para o caso
O escândalo ganhou tons mais dramáticos quando o noticiário encontrou um caso de suspeição que chamou a atenção do público. A vice-presidente Deusdina dos Reis Pereira foi flagrada insinuando por e-mail a um interlocutor das Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemg) que sua aprovação a um pedido de crédito da estatal dependeria da indicação do nome dela para seu Conselho Administrativo. Aí Temer agiu: o Planalto informou que ele tinha determinado ao presidente da CEF, Gilberto Occhi, que afastasse por 15 dias quatro dos 12 vice-presidentes (!!!), inclusive Deusdina, cujo e-mail pidão circulou por todas as partes País afora.
Gilberto Occhi, presidente da Caixa
Na semana passada, a Caixa adaptou a própria governança às exigências da Lei das Estatais. Houve, então, choro e ranger dos dentes da chamada base do governo, que se sentiu atingida no coração pelas novas exigências para o preenchimento desses cargos de alta direção.
Em entrevista exclusiva, Temer disse aos repórteres Gustavo Uribe e Marcos Augusto Gonçalves, da Folha de S.Paulo, que “esses casos têm de ser avaliados e não estou os incriminando. Acho que, cautelarmente, você os afasta para que depois o Conselho possa examinar. Porque também, se não tiverem culpa, eles podem até retornar a seus cargos. Se tiverem, não retornam.”
O estilo cauteloso, habitual no presidente, não tem força suficiente para apagar evidências chocantes que podem dotar o escândalo da Caixa de dimensões, se não comparáveis com o da Petrobrás, o petrolão, o maior de todos, mas no mínimo ao dos Correios, pavio da dinamite que fez explodir o mensalão. Com consequências imprevisíveis. O e-mail de Deusdina não contém um milésimo do teor explosivo da imagem do século em matéria de corrupção no Brasil: a fotografia do dinheiro em espécie em mochilas e bolsas no apartamento ocupado pela família Vieira Lima em Salvador. Ora, Geddel, amigo do peito do presidente e presidiário na Papuda, foi vice-presidente da Caixa no governo Dilma Rousseff, do PT, que passeia pelo mundo maldizendo o vice golpista, E este era, como chefão do PMDB, o mais alto poder que se alevantava sobre a Caixa de Pandora de todas as malandragens da CEF. Com sua insuperável inimizade com a gramática e a lógica, madame age da mesma forma olímpica e insensata como atua no episódio da compra da “ruivinha” da Astra Oil em Pasadena pela Petrobrás.
Mas Temer não tem como fugir da responsabilidade nem em Davos, na Suíça, na reunião do Fórum Econômico Mundial. E, se, realmente, ele pretende, como anunciou a manchete da Folha no sábado, limpar sua imagem suja que nem pau de galinheiro, ele deveria ler com atenção a entrevista que o criminalista René Ariel Dotti deu a Ricardo Brandt, no Estadão, publicada nesta segunda 22, com chamada na primeira página. Dotti é assistente de acusação do Ministério Público, contratado pela Petrobrás para os processos da Operação Lava Jato. Neles defende os interesses da empresa, que se considera vítima do petrolão, também no julgamento de segundo grau da condenação de Lula em Porto Alegre.
Dotti prega o fim dos políticos profissionais em estatais e no governo como forma de combate à corrupção
Na entrevista, Dotti defende a necessidade do fim dos “políticos profissionais” em cargos em comissão em estatais e no governo como forma de combate à corrupção. “Nas mazelas da administração pública em todos os níveis, a generalidade dos ‘cargos em comissão’ são portas abertas para os malsinados cabides de emprego para a prestação de serviços estranhos à função, como é rotineiro em gabinetes de parlamentares”, afirmou Dotti, responsável pela segunda sustentação oral no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, na quarta 24.
“O fenômeno tornou-se rotineiro na cultura política de aparelhamento do Estado, onde não há desempregados.” O criminalista acompanha parecer do MPF, pedindo a manutenção da condenação do ex-presidente pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no processo do tríplex do Guarujá. E também aumento de pena, estipulada pelo juiz federal Sérgio Moro em 9 anos e 6 meses de prisão. E ainda que os recursos recuperados pela Justiça sejam transferidos para os cofres da Petrobrás, elementos que constam do documento já entregue no processo.
Ao contrário disso, Temer admitiu a possibilidade de partidos continuarem a fazer indicações políticas na Caixa, e afirmou que acolheria “sem dúvida nenhuma” caso lhe fosse sugerido um nome que fosse “um Albert Einstein para uma atividade científica”. Trata-se de uma piada de péssimo gosto, que, aliás, marca distância abissal entre ele e Dotti.
Dotti é um herói dos advogados brasileiros na resistência à ditadura militar e teve moral sustentada pela própria biografia para enfrentar os advogados de Lula, entre os quais o ex-presidente da OAB, José Roberto Batocchio, quando tentaram apontar contradição, que não havia, entre sua posição na ditadura e sua postura de advogado da Petrobrás na Lava Jato.
Se realmente persegue a purgação de sua imagem emporcalhada por ações de seus correligionários e amigos neste ano em que a Nação elegerá seu substituto, certamente terá de ir além do afastamento temporário dos representantes dos partidos políticos, que são de fato os verdadeiros donos da CEF. Limpeza mesmo, para valer na Caixa, só se for extinta ou, no mínimo, privatizada. Caso contrário, sua sina será a de continuar sendo poupança de político de qualquer partido à base do “caixinha, obrigado.”
- Jornalista, poeta e escritor