Mestre JC Sebe analisa a recente condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que teve sua pena aumentada na quarta-feira, 24, à luz de Machado de Assis e do filósofo Noam Chomsky linguista, cientista e ativista político norte-americano, reverenciado em âmbito acadêmico como “o pai da linguística moderna”
Em 1881, Machado de Assis publicou um dos seus mais instigantes romances, Memórias póstumas de Brás Cubas. O enredo conta a história de um certo jovem de nome Rubião, natural de Barbacena, Minas. Por injunções do destino, o ingênuo moço herdara vultuosa quantia oriunda de um falecido seguidor professo do personagem Joaquim Borba dos Santos, pensador também conhecido por Quincas Borba. Este abastado senhor defendia com paixão uma tese conhecida por Humanitismo. Por aquele, tempo ardia a discussão em torno das propostas polêmicas lançadas por Charles Darwin em 1842, sobre a seleção natural das espécies. Apoiado em descobertas científicas, ficava claro que a luta pela sobrevivência explicaria o poder dos mais fortes submetendo os mais frágeis. Assim, Humanitismo lhe era teoria justificadora da mecânica universal e da verticalidade natural dos seres mais potentes sobre os inferiores. E essa seria uma lei implacável, aplicada a todas escalas, validando o pressuposto da “lei do mais forte”.
Machado de Assis
Segundo as páginas do livro, saído do interior, eufórico, o novo rico decide aproveitar “o banquete da vida”, e assim opta por viver na antiga capital, Rio de Janeiro. No trajeto, no trem que o conduzia, conheceu Cristiano Palha e sua encantadora esposa que, notando a candura do herdeiro, e sabedores do seu potencial de sedução, facilitam contatos com e se tornam parceiros. Juntos marido e mulher, se lançaram num voraz projeto de domínio da imensa fortuna, tratando de envolver o encantando interiorano com falsa amizade. De ardil em ardil, em nome de investimentos prometedores, o dinheiro de Rubião se esvaiu e ele, na miséria, volta para a casa, desiludido e pobre. Na trama, Machado coloca na boca de Quincas Borba uma frase que desafia entendimentos e, hoje mais que nunca, se mostra oportuna “aos vencedores as batatas”. Na passagem em que adverte o favorecido Rubião, Quincas Borba explicita seu alerta com uma parábola antológica: “Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
O atemorizante rancor que ateia fogo nas duas partes que tristemente exibe os efeitos históricos da luta de classes no Brasil contemporâneo, atualiza a lição machadiana. A profética ficção nos faz reconhecer que chegamos no ponto da rachadura fatal. O Brasil não é o mesmo depois de 24 de janeiro último. Se algum benefício pode ser visto no confronto entre os que defendem o direito do ex-presidente Lula se candidatar novamente ao posto presidencial e os demais, deve-se ao reconhecimento de sua força popular. Valendo-se de criticável aparato jurídico, a parte poderosa do poder constituído se arma de argumentos especialmente selecionados para avassalar segmentos inconformados com avanços dos “esfomeados”. Então, em nome do combate à corrupção, confunde-se justiça com eleição, e se traça uma fronteira de direitos. O mais cruel disso, contudo, é ver uma classe média recém definida como categoria capaz de consumo capitalista se arvorar em grande defensora da democracia, como se o outro lado, os tais famélicos da história machadiana, não tivessem direitos. Por certo, para muitos não interessam as conquistas indiscutíveis.
Polêmico, o juiz federal Sérgio Moro condenou Lula em primeira instância
Vale mesmo os efeitos contaminadores de propagandas mal explicadas, centradas em uma corrupção sistêmica, mas vista de um só ângulo. Na ladainha toada em repetições ad nauseam um elemento discursivo se apresenta modernizador: as piadas ou chistes, ilustrados ou não.
Na falta de nexos substantivos, o hilário se apresenta como reforço sutil e, divertindo, convence almas inocentes que gostam de rir da desgraça alheia. Ecos pândegos, tais esforços resultam adesões e se multiplicam promovendo uma triste narrativa da desgraça nacional. Não se duvida da eficácia desse mecanismo que segundo Noam Chomsky, se formula como linguagem que é, por sua vez, um processo de avaliação livre, fixados segundo os grupos que detém o poder da comunicação. Assim, em nome do poder dominante, fala-se claramente de duas partes: uma que emite conteúdos e outra que divulga, mesmo sem avaliar o conteúdo do que fala. São os que “não pedem a piada” e, nesses casos, o que vale é a gargalhada, não o teor da mensagem e seus efeitos.
Noam Chomsky, filósofo, lingista e ativista norte-americano
O raciocínio machadiano projeta uma preocupação de alto risco. A paz, o bom senso, a divisão fraterna e racional entre os grupos, não seria o suficiente para saciar a gana dos dois lados. Assim, teria que haver um vencedor, o mais forte, e outro derrotado. O confronto, pois, seria inevitável e só ele pode justificar vitória do mais forte. Segundo a parábola, Rubião, o jovem interiorano favorecido pela fortuna repentina, ludibriado pelos poderosos cidadãos da capital, perdera tudo e retornava ao seu lugar, frustrado, triste e sem nada. “Ao vencedor, as batatas”. Aos perdedores a derrota, a fome e a volta para os lugares dos quais não devem mais sair os Rubiões. Aos vencedores as batatas… e o direito ao riso fácil…