A recente viagem à Universidade de Stanford, Califórnia, EUA, destampou um baú cheio de memórias de Mestre Sebe sobre momentos “mais felizes de minha vida” enquanto, por outro lado, descobriu que “ver a utopia virar distopia dói muito”
Que a vida é uma caixa de surpresas todos sabem e muito bem. O que causa perplexidade, às vezes, é a intensidade e o teor dos eventos que se atropelam fazendo-nos expectadores incrédulos de acontecimentos de nossas próprias vidas. O bom desta questão é que fatos positivos podem se dar, e então navegamos em momentos plenos e consequentes. Comigo aconteceu algo incrível que, de forma quase irônica, ecoa agora coroando uma vida dedicada ao ensino. No começo da década de 1980, recebi um convite que mudou minha vida e consequentemente a de toda família. Em favor de melhor desempenho profissional, precisei fazer uma opção arriscada: residia comodamente no interior, em Taubaté, onde atuava como professor universitário, diretor de escola do então segundo grau. Na contramão, caberia acatar a necessidade de me transferir, com mulher e filhos, para São Paulo, onde era professor assistente na USP. Não me era mais possível manter os dois postos e ficar dividido entre um lugar e outro.
Universidade de Stanford, na Califórnia, EUA
Com sofrimento, optei pelo mais difícil e me mudei para a capital. Logo que me instalei, nova provocação se me apresentou: um convite para ser Professor Visitante em Stanford, na Califórnia, por um ano. Recusar tal oferta era algo impensável, mas havia uma amarra dramática: meu pai estava em processo de diálise e me queria sempre por perto. A pressão para responder ao convite era enorme e exigia, unicamente de mim, uma posição rápida e resoluta. Entre o futuro familiar e profissional e assistência ao pai me senti partido. De um lado pesava a atração para passar um tempo numa das melhores universidades do mundo, fato praticamente impensável na minha trajetória. A possibilidade de permanecer junto do pai era relevante, mas tinha irmãos e demais auxiliares que poderiam suprir minha ausência.
Na premência de respostas, pesou o significado da viagem para os filhos e o incentivo de mentores que avaliavam o sentido social do estágio. Optei por ir, e com embargos informei ao meu pai. O imponderável aconteceu: viajei e em seguida meu pai morreu. Creio que é fácil imaginar o que senti. Na mesma medida acho que dá para calcular o ganho geral, o avesso da dor. Estar em Stanford, conviver com uma comunidade acadêmica daquela grandeza foi fundamental para a grande virada ocorrida na experiência de todos meus familiares próximos e mesmo de meus alunos.
Logomarca da Universidade de Stanford
Além das questões particulares, cabe dizer que em termos contextuais passávamos pela Abertura Política. A superação da ditadura, colocava nas ruas multidões e na vibração generalizada achei maneira de participar estando longe. Fui um dos organizadores da Comissão das “Diretas Já” na Costa Oeste dos Estados Unidos. Assim, com vários colegas, planejamos marchas, fornecemos material para jornais norte-americanos, fizemos várias apresentações em universidades. Cabe dizer que minha mulher ainda era viva, os filhos pequenos e os sonhos iam se engrandecendo com esperanças de amanhãs libertárias. A picardia do destino, contudo, não parou por aí. Cresceu. Lá pela metade de minha participação em Stanford, fui convidado para ficar, definitivamente, como professor estável, do Departamento de História. Isto não é pouco coisa, creiam. Novamente se me apresentava um desafio de efeitos consequentes e, como sempre, era urgente a resposta: sim ou não. Confesso que foram dias atormentados, noites e noites sem dormir, mas depois de muito ponderar, com certo medo do erro, recusei o convite.
Trinta e quatro anos se passaram e neste meio tempo voltei a Stanford algumas vezes, mas sempre por poucos dias, como convidado para eventos rápidos. Recentemente, motivado pela articulação de amigos, se me apresentou a chance de nova visita, desta feita por um mês. Aceitei com alegria. Uma cascata de lembranças, contudo, se fez queda em minha memória, e exigiu de mim acertos íntimos. Primeiro, fui invadido por recordações que elegeram o ano de 1984 como dos mais felizes de minha vida. Lembrei-me de detalhes impressionantes, ângulos da casa em que moramos, festas da escola dos filhos, compras em supermercados, passeios maravilhosos em uma velha perua Datsun…
A Praça da Sé, em São Paulo, ficou pequena para a manifestação Direta Já, em 1984
Aos poucos, porém outras levas de ponderações se impuseram e me obrigam a explicações: fiz escolhas corretas? Enquanto entabulava respostas precisei reconhecer que o fator preponderante para o meu retorno daquele sonho foi a utopia de novo tempo, de UM Brasil recomposto. Eu tinha que participar daquilo. Apostava tudo no processo político nacional. A utopia de que nosso país daria certo era uma força inquebrantável que em mim suplantava tudo. Foi ela que me moveu ao retorno definitivo para a USP. Trabalhei muito para o país desse certo. Ingressei em partido político, dei parte de meu salário para financiar campanhas, fui a passeatas, escrevi sobre temas, enfim, fiz tudo que podia. Tudo. Aos poucos, desavisado, fui percebendo que minhas contribuições não eram lá tão relevantes, e sequer notei que meu partido ficava a cada dia mais parecido com os demais.
Ver a utopia virar distopia dói muito. Demais. Ainda acredito em certas propostas que, contudo, carecem de caras capazes e forças capazes de realizações. E estou de volta a Stanford. Confesso que olhar para essas mais de três décadas é como ler comovido o livro da vida e se permitir chorar. Chorar sobretudo por um sonho que desbotou. Tomara que, num futuro próximo, eu consiga dizer que valeu a pena e que faria tudo outra vez.