Antes de nada mais, convém alertar que não estou usando o termo “velhinho” de maneira pejorativa. Não. Refiro-me a mim mesmo desta forma exaltando, por exemplo, a beleza da referência às velhas guardas das escolas de samba, ao valor garantido pelo ouro velho, ou mais que tudo para a simbologia das velhas amizades. Na mesma linha, posso garantir que não visto a fantasia tão cara a quem quer converter o envelhecimento em “melhor idade”, como se envelhecer fosse uma delícia. Minha reflexão, aliás, decorre exatamente do aborrecimento determinado pela passagem do tempo. Há uns 15 anos não dirijo. Além de não gostar do manejo de máquinas em geral, prefiro ler, dormir, conversar empenhadamente, do que ficar nas ruas ou estradas com a direção na mão e concentrado nos possíveis perigos, sinais, avisos.
Não confundir com a Velha Guarda Beth Carvalho, Nelson Sargento e Fernanda Montenegro
Aconteceu, porém de eu ganhar uma bolsa para escrever um ensaio em universidade norte-americana, precisamente em Stanford na Califórnia. Os campi universitários dos Estados Unidos, em termos de localização, obedecem a três possibilidades: ou são situados em cidades e se integram à paisagem urbana, ou ficam em beira de estradas movimentadas que, afinal, facilitam o acesso, ou se isolam em locais remotos, como fazendas longínquas com o fito mesmo de tornar os estudos o centro das atenções. Stanford se coloca nesse último modelo. Sabedor disso por já ter morado aqui, tratei de refazer minha habilitação, pois queria ter liberdade de movimento. Por si só isso me foi uma aventura completa. Morador de Taubaté, com pouco tempo para resolver a questão, precisei refazer minha carta lá. Aprender as novas regras, me submeter a exames gerais foi uma volta no tempo e um desafio à minha capacidade de atualização. A tal “direção defensiva” simplesmente não existia e nem os alertas de primeiros socorros. Enfim, a despeito de mim mesmo, consegui tudo a tempo.
Estando na Califórnia, contudo, alojado no magnífico campus, achei que seria inútil alugar um automóvel. Para satisfação geral de todos, mesmo tempo habilitação para carros, optei por uma bicicleta e se fosse o caso pelas facilidades do uber. As distâncias entre diferentes pontos no campus justificam de sobra a locomoção por pedaladas, e a existência de um posto para aluguel na própria universidade explica muito dessa prática. Foi assim que busquei informações mais detalhadas sobre como me tornar um ciclista. A primeira surpresa decorreu do custo, quase igual ao de automóvel. Depois, ainda mais espantosos, vinham os detalhes complementares com os devidos acréscimos: o obrigatório uso do capacete; com cesta única ou dupla; com faróis dianteiros e traseiros; com cadeado; com adesivos para iluminação noturna. Enfim, uma parafernália insuspeitada. Aconteceu de estar em meio a tantas escolhas quando um outro professor estrangeiro vinha reportar ao dono que não achava a bicicleta. Sem saber onde tinha estacionado, contava ele que fazia três dias que procurava, sem sucesso pela mesma. Conhecendo minha clássica distração para situações como essa, fiquei gelado e, mesmo tendo gastado muito tempo fazendo as escolhas, desculpei-me com o atendente e pedi mais um dia para meditação.
Uma das razões do esquecimento do Mestre Sebe: excesso de idosos e bikes
De início fiz tudo a pé. O frio, o peso do material transportado e o cansaço, contudo, me convenceram que valia a pena correr o risco do pedal, e lá fui de volta à bicicletaria. Ao explicar meu temor para o gentil rapaz, soube de mais um apetrecho que poderia me salvar, uma chave que se comunica com a campainha e que acionada toca avisando do lugar do veículo, no estacionamento.
Nos primeiros dias deu certo ocorreu, porém, de eu perder a chave e, claro, não saber onde havia deixado a tal bike. Resolvi esperar até o final do dia para ver se todos os vizinhos de estacionamento retirariam as suas. Não contava com as aulas da noite e foi em vão meu esforço. Com o avanço das horas, não me restou outra coisa que falar com o pessoal da bicicletaria. A decepção veio com a porta fechada. Ir a polícia do campus foi bem embaraçoso, pois nessa altura da vida, revelar tal peripécia me parecia algo humilhante. Atencioso, o policial experimentado solicitou que eu refizesse o caminho desde minha casa, e numa viatura, facilmente me levou ao local onde estava a tranquila bicicleta. O que aprendi desta lição? Em primeiro lugar que não posso mesmo confiar em minha memória; em segundo que saber da chave não era suficiente para garantir o paradeiro da bicicleta, e por terceiro que neste exato momento não sei onde está a bicicleta e novamente me aflijo com a chave desaparecida.