Para Paulo Pereira
Em meio a tanto trabalho intelectual e condução de projetos acadêmicos, frente a viagem profissional, para variar um pouco optei por escolha de romances. Juntei com cuidado alguns volumes que achei de leitura conveniente, coloquei-os na mala e atravessei o hemisfério. Foi bom chegar e tirar da bagagem livros de Machado de Assis, Cony, Clarice e Callado. Pronto, nas horas vagas, teria combustível para uma boa batalha de revisão crítica, literária e prazer de releituras fecundas. Com a certeza de que ninguém passa impune por uma seleção dessas, ao cabo da leitura de “Quincas Borba”, de Machado de Assis, escrevi uma crônica “Ao vencedor as batatas”. Minha proposta era simples: transpor o mote da vitória dos mais fortes, para a crítica discursiva sobre a derrota do recurso de Lula em janeiro último. Só isso. Não pretendia defender ninguém. De forma alguma, até porque as estatísticas eleitorais são eloquentes. Minha perplexidade corria por conta de outros autores, alguns teóricos, em particular de Noam Chomsky.
Pois bem, o texto foi publicado e, por um comentário em especial, percebi que não me fiz entender adequadamente. Isso me preocupou, posto ter optado por também me referir, na mesma linha da abordagem anterior, pelo filtro de outro autor, tendo como pretexto o “Quarup”. Pensei, e mesmo temendo repetir dissonância, resolvi ir em frente a exemplo da valentia de Antônio Callado – que foi preso duas vezes, perseguido, exilado e torturado pela ditadura. A homenagem àquele exemplo, exigia que eu fosse em frente. Assumindo ser mais claro, dei continuidade a proposta inicial. Optei por seguir o mesmo esquema: falar um pouco do conteúdo e destilar ideias de fundo ético ou moral.
Antônio Callado, se vivo fosse faria 101 anos
Ainda que muitos não o considerem entre os melhores livros de Callado, “Quarup” figura como um dos meus favoritos. A história, publicada em 1967, se passa entre 1950, segue até o golpe militar de 1964 e seus primeiros desdobramentos. O personagem central é um atormentado padre que, por fim, deixa a batina para entrar na luta armada. A tensão extraordinária gerada pelas aventuras de Nando mostra a complexidade das personalidades divididas entre projetos salvacionistas, a frustração utópica e o desregramento ou desmontagem da crença política. Na saga que se desenrola rápida e perfilada por acontecimentos históricos – a criação do Parque Nacional do Xingú, o atentado a Carlos Lacerda, o Golpe de 1964 –, ainda no mosteiro, o noviço se apaixona por Francisca, moça linda, rica e noiva de Levindo. Atormentado por fantasias, para fugir dos pecados, opta por viver entre os índios do Xingu, não sem antes ter um caso ardente com uma jovem inglesa, Winifred. Ainda religioso, viveu também um turbilhão no mundo de drogas, álcool e sexo clandestino. Nando, apesar de tudo, prosseguia em sua missão e, por fim, já liberto do sacerdócio torna-se guerrilheiro. Sua obsessão por Francisca continuou e teve lances próximos de uma tragédia. Toda trama, porém, seria explicada segundo a cadência da crescente repressão do governo ditatorial. Grande parte da história tem a floresta como espaço simbólico de um Brasil metaforizado pela barbárie política.
A par do movimentado enredo, a atenção cuidadosa dada por Callado a um festival dos indígenas do Xingu, o Quarup, é comovente. Entre tantos detalhes do complexo cerimonial, alguns são dignos da melhor antropologia, e, com destaque, tem-se a descrição do “huka-huka”, uma luta muito rápida que ocorre no meio da celebração dirigida aos mortos – este, aliás, é o mais importante evento dos indígenas do Xingu. O enternecedor na luta é que o vitorioso não pode humilhar o adversário. O respeito pela dignidade alheia, pela sua integridade física, é a regra sagrada. Tal postura, diga-se, eleva o ganhador à condição de deferência e à qualificação do mérito da vitória frente a comunidade. É exatamente sob a atmosfera dessa narrativa que penso nas lições oferecidas por Callado.
Flagrante de uma luta no Festival do Quarup
Confesso que ando esbarrando na depressão sociológica. Quando vejo em listas das redes sociais as piadas deferidas contra os perdedores, fico inquieto e indeciso entre a surpresa e o desengano. Levo em conta nesses casos a procedência de quem posta as tais mensagens e assim sofro ainda mais. E então me perco em mim mesmo, pois não é raro, identificar que as mesmas pessoas mandam “bons dias”, falam de anjos, emitem notas em campanhas beneficentes. Tenho que admitir que há um toque de humor na intenção das pessoas, mas quando vejo os desdobramentos, em particular os comentários reforçando sátiras dispensáveis, admito que, definitivamente, não entendo mais o mundo.
Ainda bem que Callado escreveu “Quarup”. Ainda bem que mesmo tendo que admitir a força da distopia eu possa pensar que em algum lugar da selva brasileira existe um ritual de luta e de respeito. Ah!… Que bom seria se pudéssemos reinventar o Brasil e aprender com os índios que mais importante que vencer, é não se vingar, e se engrandecer com a vitória sobre o outro.