Para Virgínia Genelhu
Abri minha pasta de mensagens e eis uma surpresa desafiadora “professor, vou me casar e quero o senhor como testemunha”. Simples assim: eu seria padrinho de casamento de uma ex-aluna, moradora da Baixada Fluminense. Como pode? me perguntei. Que resposta dar, foi desdobramento mecânico. E tudo se complicava com a indicação de data, lugar, como ir. De início foi muito fácil elencar problemas, e os fiz para mim mesmo com rapidez vertiginosa. Teria desculpas robustas para o clássico “não posso”. Dizer de pequena intervenção cirúrgica no olho seria suficiente, e nada demais ampliar justificativas que poderiam declinar razões, algo do tipo, o médico recomendou que ficasse de repouso. Outras desculpas se emendariam: não sei como chegar, marquei dentista, estou com visitas em casa… Tantos obstáculos levantei que foi chegado o ponto reverso, quando olhei para meu interior e me enfrentei: porque não?
Mestre Sebe nunca havia participado de um casamento comunitário
Cabe dizer que a ex-aluna fora um caso especial em minha experiência docente derradeira. Depois que me aposentei no ano 2000, fiquei sem trabalho institucional regular por mais de dez anos. Um chamado amigo me provocou a uma proposta inédita. Sair da Universidade de São Paulo (USP), com todo aparato de infraestrutura, e lecionar em espaço em construção era atrativo desafiador. Aceitei, e por seis anos me dispus a longos percursos que incluíam caminhada, metrô, ônibus. Tudo em uma universidade que demandava esforços inauditos. Talvez, o mais expressivo entrave para desejável desempenho residisse no fato de se tratar de alunos de formação acadêmica modesta, desprovidos de tempo para estudos ou suportes como laboratórios ou bibliotecas. Tudo contrastava com o esforço anterior na cidade de São Paulo, onde os estudantes, por carentes que fossem, eram bem mais amparados que os daquele lugar. Permaneci nessa missão pessoal até o ano passado e, dentre tantas, uma aventura vibrou melhor que outras.
Logo que comecei, um elenco de possibilidades de orientações acadêmicas me foi apresentado. Estava consciente de que era personagem estranho ao corpo natural de professores que, instalados desde há muito tempo, tinham a simpatia dos alunos. Sabia também que, além do período de adaptação, seria preciso desvestir a roupagem de professor “de fora”, fato que me distinguia ainda que lidasse para anulá-lo. Aconteceu então o primeiro milagre, uma aluna de graduação queria fazer um trabalho sobre “medos e crenças de cemitérios”. O ineditismo do tema assustou os colegas e, finalmente, ela chegou até mim, pediu auxílio. Elos imediatos nos uniram e juntos fizemos pesquisas, entrevistas, articulamos teorias e, por fim, em nível de Iniciação Cientifica concluímos o trabalho que, afinal, foi premiado com distinção.
Medos e crenças de cemitério foi o tema do trabalho de graduação
A aluna era tudo que poderia desejar àquela altura da vida: cheia de vontades, inquieta, corajosa, ainda que esvaziada de leituras e informações básicas. Investi o que pude. Presenteei-a com livros, textos escolhidos com empenho, emprestei gravadores, acompanhei-a em entrevistas com personagens implicados no projeto. Nossos encontros cumpridos todas as semanas favoreceram o aprendizado de detalhes comuns. Foi assim que soube que apesar de seus 19 anos, ela tinha passado por situações pouco invejáveis: pai preso por roubo à mão armada, filha mais velha de uma prole de oito irmãos, mãe alcoólatra. Mas graças a auxilio de programa de incentivo, cursava o quarto semestre de História. E tinha um namorado que, por alguma razão, um dia, quis me conhecer. Reunidos os três tomamos um café e logo me afeiçoei ao casal.
O tempo passou e não pude ir à festa de formatura da moça. De quando em vez, recebia notícias, e nunca passou um dia de aniversário, ou data alusiva aos professores que ela não me enternecesse com mimos atenciosos. Ficamos, contudo, sem nos ver, por mais de dois anos, até que me chegou o convite. O tal “quero o senhor como testemunha” tornou-se mandamento. Desmanchei todos os percalços e, finalmente, fui ao casório. Nossa!… Foi um dos dias mais emocionantes de minha vida. E bota emocionante nisso… Como havia devotado todo cuidado à superação dos problemas de ida, não dei atenção devida ao fato de se tratar de uma ação comunitária. Sim, foi o casório de 92 pares que por décadas, anos mesmo, finalmente oficializavam suas uniões. Havia visto algo próximo a isso em noticiários, mas jamais pensei no impacto direto da situação. Minha afilhada, orgulhosa no vestido branco, com o filho de dezessete dias carregado no lugar do buquê, sorria como uma Cinderela suburbana. E eu a conduzindo ao altar…
Flagrante de uma cerimônia de casamento comunitário
Fiquei atordoado do começo ao fim. Foi uma cerimônia linda, linda. Linda e incapaz de se emoldurar em simples conjunto de narrativas. Havia um casal que estava junto há mais de 30 anos e pretendia lua de mel em Copacabana; um caso expressivo foi a de outro par em que a mãe e o pai se casaram pouco antes da filha e do genro, na mesma cerimônia. E que dizer da noiva que entrou em cadeira de rodas? O noivo cego, parecia ver tudo, e houve um padrinho que ofereceu o paletó ao amigo que queria sair bem na foto.
Sou daqueles que choram em casamento. E muito. Sei lá porque, mas me derreto, e tenho até que me controlar para fugir de esclarecimentos incômodos. Ouvir a marcha nupcial, escutar os vivas em voz alta pronunciados por familiares, misturar-me ao espírito alegre da multidão foi mais do que merecia. Meu presente? Meu presente foi pessoal, o alerta de que os sonhos podem tardar, mas são possíveis, a solidariedade é plausível, o coletivo supera diferenças individuais… E eu sou professor graças aos meus eternos mestres/alunos. Sinto-me casado com eles e feliz para sempre…