As recentes denúncias de que houve corrupção no governo militar brasileiro (1964 – 1985) trouxeram de volta um tema que deve dilatar debates. Na verdade, não se tratava de nenhuma grande revelação, pois grande parte da população menos ingênua sabia à sobejo
Talvez, o impacto recente da “novidade” tenha sido mais flamejado devido o destaque veiculado pela mídia em geral que, aliás, tem insistido no tema. Nessa linha, por exemplo, a camaleoa Rede Globo de Televisão, de maneira latente, tem noticiado agravantes, em todos os seus horários mais concorridos. Por lógico, o referendo da poderosa Central Intelligence Agency (CIA) dos Estados Unidos, lastreou a discussão, até então sempre interdita quando não silenciada. Permitida pela legislação norte-americana que autoriza a publicidade de documentos confidenciais, 50 anos depois, a notícia liberou a chave que abre cravelhas de onde o mal cheiro de memórias enterradas voltam a intoxicar o já poluído ambiente político brasileiro. Em cena, portanto, convocam-se personagens que um dia foram aproximados de salvadores da pátria corrompida e ameaçada por ideologias que não as suas. Alinhada à corrupção, outras feridas foram abertas, deixando expostos vestígios refinados de torturas, mortes, desaparecimentos, violência sexual.
Protegidos por processos censores eficientes e pela mitificação de um período de trevas, frente ao inevitável aparecimento de “novas provas”, coloca-se em questão a integridade dos ditadores e asseclas, soldados sempre protegidos pelo controle da opinião pública. A farsa vem caindo dia a dia, e raspa-se o verniz dos pretensos guardiões incontestáveis da honestidade, da moral cidadã. Os interessados em saber sobre tal divulgação podem encontrar aparo na edição do jornal O Globo do dia 04/06/2018, ou mesmo pelo site http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/06/para-eua-havia-corrupcao-na-ditadura-brasileira-diz-texto-da-cia.html
Com manifestação explícita do historiador Carlos Fico se esclarece que “Durante a ditadura militar, houve muita corrupção, mas não havia visibilidade da corrupção, por conta da censura política. Então, muita gente tem a imagem de que naquela época não havia corrupção, mas isso é uma ingenuidade completa”. Frente a isso, laconicamente, sem forças para se justificar, o escândalo que macula os ideais das Forças Armadas, o atual Ministério da Defesa afirmou que “os telegramas revelados (pela CIA) são conhecidos pelo governo desde 2015 e que não há nenhum novo posicionamento a ser feito”.
Finalmente, junto ao bom senso em admitir seus crimes, ratifica-se uma verdade reveladora “não há nenhum posicionamento a ser feito”. É exatamente apoiado nessa admissão que se pode perguntar: não mesmo? Do lado da sociedade civil, não deveríamos incentivar a mudança de postura e rever tais ações, pactos de anistia? Tendo derrubado um governo eleito pelo povo, Goulart, teriam os militares direito de não prestar contas públicas por atos feitos em nome da ordem e do progresso? Mas as coisas não param por aí…
Em meio a muitas outras denúncias, todas filtradas por documentos inquestionáveis, uns mais alarmantes que outros, todos de fácil acesso na internet, permite-se saudar a democracia como espaço aberto para discussões que fortaleçam as opiniões. É nesse bojo que se valorizam as retomadas sobre tratos perpetradas pelos militares e seus asseclas contra os opositores sempre colocados como suspeitos. Torturas requintadas, a “casa da morte”, a violação de mulheres, os desaparecimentos, tudo apurado, não seria matéria de reexame? Não seria saudável para a saúde nacional reconhecer publicamente os agentes hoje identificados? Vejam que há relação detalhada das responsabilidades de cada um… Segundo a Comissão Nacional da Verdade, aliás, são indicados todos os 377 nomes dos agentes do Estado que, de acordo com a categoria de atuação, são referenciados. Essa farta variedade de detalhes pode ser facilmente acessada no https://jornalggn.com.br/noticia/a-tortura-e-os-mortos-na-ditadura-militar. Mas não se para por aí.
Os tribunais internacionais atentos ao zelo dos Direitos Humanos são claros em dizer que os crimes feitos contra a humanidade, jamais prescrevem. Um caso em especial tem merecido reconsideração. Os documentos da CIA são claros ao retomar o assassinato da mais expoente vítima dos maus-tratos impingidos pelos porões da ditadura, Vladmir Herzog. A Corte Interamericana de Direitos humanos, publicamente, condenou o Brasil pelo inominável assassinato do jornalista, em outubro de 1975 e, agora, sua família pede reenquadramento. Sobre o assunto, com zelo e cuidado sugere-se que se leia: https://oglobo.globo.com/brasil/corte-interamericana-de-direitos-humanos-condena-brasil-por-assassinato-de-vladimir-herzog-22851806 Por certo, os documentos da CIA são mais insistentes nos casos do final da longa noite de 21 anos, pela qual nossos pesadelos foram testados.
Ditadura assassinou e simulou suicídio de Vladimir Herzog
Há, contudo algumas inquietações que clamam por respostas, além das tais revelações “novidadeiras”. Dentre tantas, cabem duas questões que não podem mais ser caladas: 1- como conseguiram os militares permanecer acobertados por anos, sem que suas torpezas fossem publicamente admitidas? 2- o que fazer agora que sabemos o suficiente para a retomada da questão?
O primeiro caso é simples e de fácil enunciado: o golpe não sanou a crônica prática de corrupção, típica de democracias em construção, alicerçadas em estruturas patriarcais, patrimoniais, colonizadas e de rala participação popular. Por lógico, o pacto de silêncio conciliou a vocação libertária, latente no povo brasileiro, com a cumplicidade do regime que se viu esgotado em mandos e desmandos.
A segunda questão, porém, é bem mais complexa, porque mexe em versões valentes de países vizinhos e que passaram pelos mesmos processos. O Chile, a Argentina e o Uruguai tiveram coragem de enfrentar a própria realidade e se propuseram, à luz de informações indubitáveis, sem medo de feridas reabertas, rever seu passado ditatorial, cruel e ineficiente, e condenar os mandatários por crimes contra a humanidade. Em nosso caso, pervivendo a clássica matriz que reza que no Brasil reina a tradição do impasse que, a cada problema grave, sugere o clássico deixa disso, e em nome de um pacto surdo e discutível remontamos o que João Alexandre chamou de “tradição do impasse”.
Entre o que se considera estabelecido e as novas posturas, despontam desafios que convidam a revisão da Lei da Anistia: teremos fôlego para tanto? Ou é melhor deixar como está para ver como fica, mais uma vez?