Já escrevi anteriormente que sempre achei muito difícil explicar o Brasil para estrangeiros. Repetidas experiências me fizeram acumular preocupações renovadas a cada tentativa, todas algo frustrantes. Juro que achava ser esta uma das tarefas mais complexas da formulação lógica dos acontecimentos que, afinal, nos implicam como seres políticos, entes inscritos na política. A certeza de que nosso percurso histórico é/seria peculiar, me obriga garantir que “sim”, que há uma originalidade no desempenho de nosso papel no universo, e que a marca do Brasil tinha que ser reconhecida como garantia de uma combinação única, mescla de segmentos étnicos colocados no mesmo espaço de redefinição miscigenada (pelo menos culturalmente, já que a propalada democracia racial é um mito resistente). Esta garantia, por forte que é, nos convoca a relativizações, é verdade, pois olhando cada outra realidade chegaríamos a constatações de particularidades também evocadas como diferentes.

Tal posicionamento, contudo, nos obriga a uma hierarquia expositiva que, obrigatoriamente, nos faz acatar que há mais fragmentos de singularidades entre nossas manifestações do que a de muitos países ou culturas que somam semelhanças menos esdruxulas, ou mais facilmente justificadas. Tamanho geográfico, áreas florestais, secas e ao mesmo tempo fartura de água, tudo juntado a etapas de povoamento que agrupam sobrevivências indígenas com o maior contingente de escravos vindos da África, portugueses que se desafiaram em uma experiência formidável, e uma imigração branca mais recente, nos distingue com facilidade, e tudo junto, nos faz peculiares e relevantes.

Millor

Julgava essas explicações para gringos entres as mais difíceis missões dos historiadores, e até admitia de saída que o esforço, por mais bem resolvido que fosse, seria falho. De tal forma me consolava que consegui firmar uma máxima: o estrangeiro tem que aceitar o Brasil como dogma de amor, pois compreende-lo é impossível. Houve, contudo, um momento mais recente, em que rebaixei essa escalação. Falar para brasileiros fora do Brasil tornou-se proposta ainda mais intrincada. Justifico minha afirmativa garantindo que há uma natural e imediata relação de poder e julgamento de quem está fora do meio e quer se sentir parte integrante. Explico-me: como o processo de desligamento identitário dos nossos patrícios é manhoso e insistente, insinuante, e porque ao em vez de assumir coerência entre a distância física ou geográfica, os evadidos em todos os níveis, mais se ligam e não largam da identidade original. Aprendi que eles perdem o processo em movimento e coisificam fatos e os tratam como se fossem fenômenos isolados. Tudo fica mais concreto e palpável, pois a vertiginosa velocidade das consequências locais, nossas, se lhes ficam a um tempo minoradas pela distância, agravada pela impossibilidade de participação no espaço e tempo imediatos.

Por favor, não pensem que as coisas pararam aí. Não mesmo. Tive que propor outra escala, também renovada na surpresa dos acontecimentos recentes sem os quais não seria viável qualquer esforço explicativo. Assim, mais do que admitir que explicar o Brasil para os estrangeiros, ou para os brasileiros que deixam o país, tem sido ainda mais embaraçoso explicar o Brasil para os próprios brasileiros. Em tempo, ainda antes que me julguem pretencioso, transfiro os méritos e defeitos de tal pretensão ao coletivo nacional, pois é visível que de repente todos se tornaram explicadores, donos de visões pessoais que autorizam a garantir que, afinal, somos historiadores natos, com ou sem necessidade de formação acadêmica. E nesse caldo de explicadores, pouco vale se somos ou não profissionais especializados. O pior é que a garantia disso decorre do princípio de igualdade política, no dizer já expresso por Millôr Fernandes que garantia: a lei é igual para todos, aí começa a injustiça.

Ives Gandra

O jurista Ives Gandra Martins tenta remar contra a história

Em conversa recente com uma colega também historiadora, em vista dos acontecimentos recentes, contabilizando uma vida de trabalho em escolas, em particular em nível universitário, sentimo-nos abalados e tendo que admitir nosso esforço vão. Um breve giro pelas redes sociais é prova cabal de nosso fracasso: ninguém sabe nada de História. Se para alguns pode parecer chocante esta afirmativa, cabe convidar a uma olhada nas redes sociais. A perda da credibilidade dos historiadores de ofício transparece um nivelamento raso que delega a todos direitos sobre visões do passado. A negação da ditadura como processo político drástico e consequente, por exemplo, é prova de que se apaga um passado, colocando-se no lugar um nacionalismo sem cabimento no conjunto das culturas politicamente desenvolvidos. E junto vem a liberação de armas, o desprezo ao meio ambiente, o sexismo descabido e todos os preconceitos. Sem uma revisão do pretérito com vistas no presente, sem um diagnóstico cabível da comédia de erros que vivemos em termos de governo, antes de explicarmos o Brasil para os brasileiros que estão fora de nosso quadrante geográfico e antes de explica-lo para os estrangeiros, temos que nos entender, internamente. Então, como pensar escola sem partido? Como, por favor, expliquem-me e expliquem-se.