O legado lobateano é complexo e a cada dia fica mais exposto a críticas, nem sempre justas ou condizente com o tempo em que foi produzida. Por certo, isso ocorre porque Lobato foi autor de sucesso que atravessa os tempos, situando-se inclusive como um dos cinco autores mais lidos do nosso plantel crítico e literário. Um dos flancos mais vulneráveis de sua extensa obra serve de munição às questões ligadas à negritude, ou seja, a quantos leem sua obra com o fito de discutir questões raciais e de preconceitos de cor. Uma das estratégias mais comuns a esses consiste em isolar frases, ressaltar palavras ofensivas, salientar detalhes que no entender atual seriam passíveis de juízo acusatório.
A fragmentação de passagens e a recolocação em outras narrativas favorece leituras deformadas, convenientes a uma postura defensiva de quantos padecem discriminação. Além dos danos ocasionados à consideração de uma obra que merece ser vista em seu conjunto, há um comprometimento ainda mais lesivo, ou seja, a “presentificação” da leitura, ou seja, a consideração de certos escritos como se tivessem sido escritos hoje. Esquecer que Lobato compôs sua extensa obra em um tempo em que havia senso comum em relação ao enfrentamento de questões raciais, isolá-lo de sua época e pensar nos valores de hoje, implica centralizá-lo como alvo pelo menos injusto. Convém recomendar aos apedrejadores de Lobato que pensem em personagens como Negrinha, Jardineiro Timóteo, Boca-torta. A contrapelo de percepções iconoclastas, essas figuras sugerem exatamente o oposto.
Saci e sua turma, segundo Ziraldo
Precisei deste introito para abordar uma decorrência de leituras de outro personagem do autor de Urupês e Cidades Mortas. Falo da figura do Saci, em particular de duas obras específicas, uma lançada em 1918, o Saci-pererê: inquérito, e outra em 1921 O Saci. O primeiro foi publicado como resultado de uma pesquisa e o segundo já no rastro de Reinações de Narizinho, em 1920, destinado ao público infantil. As conexões entre as duas obras são interessantes e indicativas de um projeto pessoal que tinha como cenário a modernização da cultura brasileira. Não é atoa que as produções sobre trabalhos de Monteiro Lobato têm servido de base para peças de teatro, scripts de televisão, exposições, e até apropriada pela poesia, cordel. Sob essa perspectiva, cabe pensar o significado dos cartoons ou quadrinhos que, afinal, atam elos que ligam uma obra seminal aos mecanismos de divulgação.
Maurício de Souza e sua turma
Como uma das figuras mais estimadas pelo público infantil brasileiro, o Saci se destaca por ser um ícone que diverte e entretém, intriga e fustiga, imaginações. Oriundo de uma tradição oral, difusa e variada, sabe-se que originalmente a figura do perneta é de origem indígena, provavelmente dos guaranis, ecoado de lendas colhidas na fronteira do Brasil com o Paraguai. A presença dos jesuítas teria transformado o protetor das florestas e guia de pessoas perdidas nas matas em um demônio, personagem de figuração medonha, com rabo, orelhas pontudas, olhos em movimentos rotatórios e mal-cheiroso.
A presença dos escravos serviu para garantir ao tipo aproximação com o negro escravo com roupas pobres, descalço, ardiloso, violento, embusteiro. Foi Lobato quem buscou mudar tal visão. Fazia parte do ideal dos participantes do movimento modernista, a caracterização de um protótipo representativo do Brasil. Mesmo sem integrar diretamente o grupo dos intelectuais de 1922, dos tais modernistas, Lobato se inscrevia nas mesmas propostas amplas que, afinal, buscavam um modelo capaz de representar nossa cultura independente de arremedos europeus. Depois de fazer longa e paciente enquete, em 1917, Lobato chegou a um modelo capaz de sintetizar características que serviram para dar forma ao que seria um duende genuinamente brasileiro. E o Saci desde logo serviu de base para tanto. Transformado por meio de um lento processo mimético de ente do mal, a figurinha virou bonzinho; de traiçoeiro se converteu em divertido; de adulto, se transformou em figura para criança.
Saci alegre segundo Maurício de Souza
Um dos desafios de Monteiro Lobato consistiu em dar forma imagética ao Saci. Sim ele não tinha uma imagem e o sucesso da produção para crianças aguçou a capacidade comunicativa de Lobato que, ele mesmo, provocou um concurso sobre como seria o saci. O vencedor conseguiu dar contornos ao que seria o primeiro saci “retratado”. Desde então estava aberto o campo inventivo sobre o personagem. Dois autores, ambos cartunistas reputados, por fim, sintetizaram a imagem do que é o saci hoje. O primeiro foi Ziraldo ainda nos anos da década de 1970. O segundo Maurício de Souza, já mais tarde, nos anos 80. Entre um e outro, porém, há diferenças que remetem o debate racial. Para o mestre Ziraldo, o saci era negro retinto e ostentava características positivas de um malandro muito querido pelas peripécias sempre capciosas. Para Maurício de Souza, o saci teria efeitos mais pedagógicos, menos safados, e ele seria mulato.
É válido notar que em ambos os casos, o saci manteve-se amado. Amado independente da cor de sua pele mais ou menos escura. O que seria importante mostrar é que “objetificado” como ser incorporado ao imaginário cultural brasileiro, o saci criado por Monteiro Lobato se porta como argumento antidoto do julgamento precipitado e até leviano sobre o autor taubateano. De toda forma, nada melhor do que embarcar no debate e fazer dele caminho para melhor entender o profícuo escritor que, certamente, merece ser visto pelos méritos que tem como criador de personagens que compõem nosso mundo.