Tornou-se comum parafrasear situações da vida cotidiana com passagens musicais, algo do tipo: “a gente vai levando”, “deixa a vida me levar”, “levanta sacode a poeira e dá volta por cima”… Expressar-se por meio de letras de músicas acabou, pode-se dizer, por virar hábito e não há quem, mais ou menos, deixe de se valer desse recurso. Eu particularmente, nesta altura da vida, tento achar trilhas sonoras para cada evento, ou mesmo para justificar minha experiência como um todo. Houve um tempo em que muito se comentava sobre canções preferidas e, em arroubos exagerados, lançavam-se perguntas como “quais suas dez músicas mais queridas”? Isso passou, pois seria desprezível na altura dos nossos dias – com a facilitação eletrônica e acesso a tudo por aparelhos portáteis – definir alguma ordem de escolha durável.
Sim, sem exagero, a cada hora temos uma nova mensagem musical e isto acelera também velocidade nas reposições das tais “músicas preferidas”. É verdade que algumas resistem mais, e entre as estrangeiras tocadas à exaustão, “My way” tem ocupado lugar especial.
Aliás, convém lembrar que esta canção, originalmente é francesa e foi composta por Claude François, no ano de 1967, com o título “Comme d’habitude”. Adaptada para o mercado norte-americano por Paul Anka em 1968, virou uma espécie de hino narcisista e vale como metáfora útil, filosoficamente portátil, justificadora de nossos erros e acertos vida afora.
Mundialmente aclamada como um dos clássicos de Frank Sinatra, todos conhecemos alguém – às vezes nós mesmos – que se apropria desse caminho alheio para chamá-los de seu. E assim convertemos “My way” em testamento pessoal, e até poderíamos chorar no enunciado “I did it in my way”.
Claude François, autor de “Comme d’habitude”, mais conhecida como “My Way”
Há poucos dias morreu o nosso já saudoso João Gilberto. Mal havia sido o corpo enterrado e, com justeza, as homenagens ressoaram em todos os alto-falantes, inclusive nos que bradam em nosso interior. Pois bem, foi assim que me perguntei “qual a canção do baiano João Gilberto serviria para fundo de minha vida, no momento atual”? Perfilei várias e fui deixando uma depois da outra. Não seria a interpretação de “um cantinho um violão”, pois não toco nada; “a garota de Ipanema” não teria cabimento, pois moro em Copacabana; “desafinado” teria chance, pois nunca conseguiram classificar minha voz em coral algum, e, por ironia “águas de março” também se ajustaria por ser mês de meu aniversário. Destitui todas, porém, filtradas algumas de suas 119 inte rpretações, cheguei em um ponto calhou com alguma exatidão: “insensatez”. Vejamos a letra composta em parceria com Tom Jobim: “Ó insensatez que você fez/ Coração mais sem cuidado/ Fez chorar de dor o seu amor/ Um amor tão delicado/ Ah! Porque você foi fraco assim/ Assim tão desalmado?/ Ah! meu coração quem nunca amou/ Não merece ser amado/ Vai meu coração, ouve a razão/ Usa só sinceridade/ Quem semeia vento, diz a razão/ Colhe sempre tempestade/ Vai, meu coração/ Pede perdão, perdão apaixonado/ Vai, porque quem não pede perdão/ Não é nunca perdoado”.
Feita a escolha, outro desafio se ecoou em meu debate pessoal: mas “insensatez” seria trilha para que situação? Serviria de fundo para meu momento atual, politicamente desiludido, ou para a vida toda, não menos desiludida frente nosso pais tão mal amado? Foi assim que, consultando meu coração crítico, optei por ambas as situações. No plano cidadão e pessoal, lendo a letra da música com olhos culpados, conclui que sempre, eternamente, usei a emoção como bússola: acreditei, supus que historiador teria o produto dz minha faina efetivada na correção de erros crônicos tidos como típicos de um país bonito e pacífico. Errei muito, ainda que alguns importantes acertos tenham também estrelados. Mas, mesmo assim, dei estrada para tanta caminhada deste meu “coração mais sem cuidado” e, com tristeza, admiti ter semeado mais tempestade do que deveria. A insensatez abriu céu para equívocos otimistas, para crenças utópicas e com as quais iludi o “coração que não merecia ser amado”. Isso me convida a pedir perdão, “perdão apaixonado”, pois deveria ter semeado juízo em vez de amor enfeitiçado. Fui insensato ao crer na cultura brasileira: tolerante, múltipla, afável e alegre, sem ódio. Olhemos ao nosso derredor o que restou de tanta insensatez…
João Gilberto com Bebel, sua filha com Miúcha, irmã de Buarque
Mas no meu espelho pessoal tendo que responder também “porque foi fraco assim” e, dessa forma, percebi que a mesma “insensatez” se faz brilhar em outra possibilidade confessional que, por fim, fez “chorar de dor o seu amor/ um amor tão delicado”. Foi aí, exatamente neste ponto, que me compreendi na canção: errei por dentro ao me deixar crédulo que o mundo poderia ser melhor, que minha harmonia interna seria prolongamento do contexto geral daquele “Brasil do jeitinho”, ou do “Deus é brasileiro”. Errei! Não vi a índole má da nossa elite, e de alguma maneira permiti que a tirania política e a injustiça social me iludissem. No som baixinho de João Gilberto, ouço que poderia ter sido mais aguerrido contra a institucionalização do poder como chegou até hoje, e acato que na verdade não soube amar o ser delicado ferido pela minha insensatez. Resta o perdão, e pelo eco sussurrante de João Gilberto, peço perdão, perdão apaixonado.