Na minha terra, homem que é homem não usa laquê. Mesmo depois de tantas invenções—o smartphone e a tomada de três pontas, entre elas — e do beijo lésbico entre Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, laquê ainda é um produto de uso exclusivo de mulheres.
Por isso, fiquei chocado coma confissão hétero de Jair Bolsonaro de que usa laquê.
O que Donald Trump, dono de um penteado ridículo, e Boris Johnson, idem, diriam de um êmulo direitista que usa um produto privativo dos públicos feminino e transgênero?
Duas madeixas questionáveis: Boris ou Trump?
Rogéria, a querida Rogéria, Divine, RuPaul, Priscila, a rainha do deserto, também Nora Ney e Elis Regina em início de carreira — todas abusaram em algum momento do laquê. Acho justo. Tinham lá seus motivos — e eram mulheres ou transformistas.
Divine, em “Hairspray”, de John Waters, serve de um compêndio sobre o tema, registro aqui para os bolsonaristas.
Na política, parece, o cabelo conta bastante. Em especial aos populistas. No Brasil, Jânio Quadros, um tipo preocupado com a garrafa e a rinha de galo, se ocupava de sua juba. Para se assemelhar ao eleitor mais modesto, salpicava as ombreiras de seus ternos com caspa.
Em sua mente turvada, a caspa daria a ele uma aparência de descuidado, de gente do povo, vítima de um mal comum às pessoas simples — a caspa. Poderia ter escolhido o bicho-de-pé de Monteiro Lobato, cultivado pelo Jeca Tatu, ou até mesmo um unheiro, também comum à população desguarnecida de saneamento básico e de cuidados médicos, mas populista é sempre um ator que dissimula e não suja as mãos de fato.
Ainda no Brasil, Fernando Collor abusava do gel e da brilhantina. Uau, aquela juba esticada a partir da sobrancelha dava-lhe um ar de… Fernando Collor. Lembro-me de Carmen Mayrink Veiga, saudosa, dizendo que ele era bonitinho, mas precisava lavar aquele cabelo. Collor, sabe-se, lavava outras coisas.
O uso de laquê afasta definitivamente Bolsonaro de outros de seus ídolos, como o torturador Brilhante Ustra ou os generais da ditadura militar. Mesmo a um autor inventivo como Olavo de Carvalho não ocorre uma cena onde Garrastazu Médici interrompe uma reunião do Conselho de Segurança para retocar o laquê. Tampouco o mais carrancudo de todos, Ernesto Geisel, imagine, o Alemão com sua juba indócil aparada por um jato de laquê.
Observando-se anova fauna, percebe-se um padrão capilar entre Bolsonaro, Silas Malafaia e Marco Feliciano. Não são apenas afinidades ideológicas, religiosas ou de fundo que os unem — o cabelo, me parece, está na raiz dessa intensa amizade hétero. Por certo, ocupa bons momentos de seus solilóquios direitistas.
Pastor Malafaia, mesmo padrão capilar que o presidente Bolsonaro
Em especial, Feliciano: uma rápida busca no Google exibe imagens capazes de revelar um cuidado gramsciano coma cabeleira. Ora longa, quase cacheada, ora curta, assentada em algum produto — brilhantina? —, ou ainda com um proeminente topete (aquela marquise capilar pede um fixador).
Malafaia, idem. Sugere, em seus lives, possuir uma cabeça sempre lubrificada. Por onde as ideias chegam, e escorregam, sem chance de serem fixadas. Caem ao chão, como a caspa de Jânio Quadros. Com a diferença de que JQ era professor de português — enquanto Malafaia e Feliciano não são capazes de cometer uma mesóclise sem ter de desenhá-la antes.
Jânio Quadros, bem populista, se apresentava nos comícios com caspas no paletó
Por certo, Bolsonaro e Feliciano são letrados para saber que o laquê alcança seu apogeu logo depois da Segunda Guerra Mundial, de carona no spray, a partir da chegada do aerossol. Era então um produto industrialmente tosco, já que deixava o cabelo duro. Exclusivamente usado pelas mulheres desejosas de um look modelado. Hoje evoluiu, deixa a juba fixa, mas não dura e é chamado de spray fixador.
Em seus “Cadernos do cárcere”, Antonio Gramsci não se detém especificamente no uso de laquê por homens, mas comenta detalhadamente a ideia de uma “revolução passiva” vis-à-vis uma “revolução ativa”.
Mas tenho medo de perguntar a Bolsonaro qual delas é de sua predileção intelectual.
Laquê, Jair?
Miguel de Almeida é escritor e diretor de cinema