A Assembleia Geral das Nações Unidas se reúne a cada setembro, em Nova York, há mais de 70 anos, e nessa grande festa móvel da diplomacia mundial o Brasil é sempre o primeiro orador. Depois de nós, falam os Estados Unidos e, naturalmente, a voz da potência hegemônica durante todo esse longo período carrega mais peso e influência do que a nossa.
Fomos escolhidos lá atrás para esse papel prestigioso porque tínhamos sido membros fundadores da Organização, porque a América Latina era então o maior grupo regional e nós o maior país da região, porque havíamos sido combatentes vitoriosos na Segunda Guerra Mundial e porque nosso então representante era Oswaldo Aranha, ao mesmo tempo, um estadista e um caballero de fina estampa. Quem fala na abertura sabe que sua audiência é literalmente global. É escutado hoje pelos representantes dos atuais 193 países-membros e pelos dirigentes dos principais organismos internacionais. Os grandes meios de informação estão presentes e atentos. Às vezes, ao longo dos anos temos cometido erros de julgamento e avaliação sobre como víamos o mundo daquele momento e não seriam poucos os parágrafos de discursos nossos anteriores que seria hoje caridoso procurar esquecer.
Não há nada escrito que nos assegure que esse privilégio deva perdurar. A cada ano o Brasil, pela moderação de suas posições, sobriedade de seu comportamento e fidelidade aos princípios e procedimentos inscritos na Carta de São Francisco, readquire o direito de continuar a ser o país que dá o tom aos debates e que expressa, em primeiro lugar, esperanças e preocupações que costumam ser depois amplamente compartilhadas.
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Era bom que continuasse a ser assim. Temos ofendido, contudo, em datas recentes, gregos e troianos e praticado uma diplomacia a um só tempo ingênua e temerária. Vamos ser ouvidos agora com uma não pequena dose de desconfiança por algumas grandes potências e por vários países islâmicos. Pelos governos de países de orientação esquerdista ou populista em todos os seus matizes; por mulheres que passaram o frescor da mocidade; pelas ONGs que atuam na proteção dos direitos humanos e do meio ambiente e por todos aqueles que defendem ou integram alguma minoria sexual. É muita gente junta.
Todas as ofensas recentes não nos renderam nada, e o custo não tem sido pequeno. O mundo, convém lembrar, tem uma certa ideia do Brasil que não é, em seu conjunto, uma ideia desfavorável. Existe hoje alguma perplexidade sobre o país em que o Brasil parece ter se transformado. A nossa tolerância quase anárquica agora aparece vestida de zelo religioso. A aceitação risonha da diversidade substituída pela imposição de normas rígidas e arbitrárias. O sentido do humor abandonado por um estreito sectarismo. O mundo anda com saudades do Brasil.
Vamos ver como os nossos atuais cozinheiros preparam o discurso do dia 24. Ajudei a escrever vários deles em anos passados. Costumavam ser obra de diversas mãos e tendências. A redação podia ficar menos elegante, mas havia no fim um claro ganho em sabedoria. Pelos motivos errados vamos ser ouvidos agora com mais atenção do que costuma acontecer e não excluo que tenhamos uma audiência menos numerosa e seguramente menos receptiva do que em oportunidades anteriores.
Não tenho conselhos a dar a quem agora prepara nossa fala. Apenas gostaria de lembrar a sempre atual e oportuna advertência feita algum dia a dois porcos-espinhos inexperientes sobre como fazer o amor: que tivessem muito cuidado.
Marcos Azambuja, diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty