Tem brilhado no plano das novidades literárias um gênero provocante e desafiador dos parâmetros estabelecidos. A chamada “história alternativa” permite que alguns fatos históricos ganhem versões desviadas do curso dos acontecimentos consagrados pelo saber convencional. Trata-se uma narrativa não do que aconteceu, mas do que poderia ter sido. O jornalista e biógrafo de Rondon, o norte-americano Larry Rother, por exemplo, prepara um texto sobre as possibilidades diversas que teriam o Brasil se, no Nordeste, a invasão holandesa (1624 – 37) houvesse triunfado. A proposta alarga alternativas sobre a imaginada vitória do exército de Nassau. Pensando nesse viés, numa outra chave, imaginei alguns episódios bíblicos iluminados de maneiras desviadas. E dei um vôo algo delinquente sobre aspectos desprezados pelo senso comum. Sondei episódios diferentes, a começar pelo Paraíso e pela criação da humanidade. É justo dizer, de saída, que não sou iconoclasta e que, mesmo não sendo especialista em Bíblia, minha curiosidade cristã permitiu buscar alguma nesga de ventilação heterodoxa e isso, respeitosamente – sempre respeitosamente, é claro – me permitiu invadir territórios nuviosos, quase sempre dogmatizados.
A começar pela história da criação da mulher, a Bíblia se mostra plataforma de dúvidas. No caso de Lilith, a possível primeira esposa de Adão, convém lembrar que ela realmente teria existido, segundo registros contidos na Épica de Gilgamesh, poema mesopotâmio de 2100 a.C. Este, aliás, é considerado um dos mais remotos documentos da História humana e tem ramificações em várias culturas ancestrais. Também o Talmude, livro sagrado do judaísmo, guarda referências a essa mulher rebelde, a primeira a contestar, desde a raiz, os mandos da dominação masculina (se preferirem poder ler “patriarcal” ou “machista”).
Há ainda outros fragmentos relativos a tal existência apagada das tradições vigentes, mas, segundo a fabulação, reza-se que a primeira mulher fora feita ao mesmo tempo, e da mesma “poeira” de seu parceiro homem, nossos progenitores. Na raiz, de acordo com o bíblico estabelecido, tudo foi criado à imagem e semelhança de Deus. A simultaneidade e a matéria original daquele par de humanos garantiriam, portanto, a ambos, os mesmos direitos e poderes. A continuidade mítica, no entanto, revela que a primeira mulher de Adão não aceitou ser submissa a ele, e, exigindo igualdade de tratamento, não se sujeitava a ficar sob o homem no ato sexual.
Poema mesopotâmio de 2100 a.C.
A insistência no controle corporal teria motivado a primévoa companheira a fugir do Paraíso e, num gesto de vingança, se tornar figura satânica, inimiga do companheiro que permaneceria solitário no Jardim das Delícias. Atendendo o pedido do entristecido e solitário Adão, Deus teria criado, logo depois, uma nova companheira, Eva. Na nova tentativa do Criador, corrigindo o erro de produção, fez a nova mulher, a segunda, a partir da extração de uma costela do macho, gerando um ser “carne da minha carne, osso do meu osso”. Por ter saído do corpo do homem, a submissão feminina seria natural. Assim, com toda inventividade bíblica, estaria justificado o domínio masculino, inaugurado o patriarcalismo, e, pela mulher, submetido ad seculum seculorum o pontificado do homem.
Segundo a tradição, Lilith, foragida do poderio masculino, em andanças pelo mundo, se encontrou com Samael, um demônio que a acolheu e deu liberdade para tentar impor o prazer sexual como regra. Adão e Eva viviam felizes, ela obedecendo as regras dele. Inquieta Lilith, porém, libidinosa, teria se transformado em uma cobra, o símbolo fálico animal, e, invadindo o Paraíso, provocado a passiva companheira. Deve ter sido expressivo o argumento usado para que a submissa Eva caísse em tentação e convencesse o parceiro a pecar junto. Comido o fruto proibido, o resto da história, como todos sabem, virou o trajeto da humanidade falível, mortal e que, sobretudo, haveria de ganhar o pão com o suor de seu trabalho.
Foragida, Lilith caiu nos braços de Samael
Há aspectos inquietantes nesta fabulação que volta a reluzir agora. Com força incrível, o perfil de Lilith reaparece como argumento de direito. É claro que o vigor do movimento feminista se impõe e nada mais conveniente que a rebeldia da primeira dama bíblica como metáfora. Mas há algo mais a ser considerado neste jogo de poder entre o feminino e o masculino: o acesso ao prazer da mulher e as limitações do exclusivismo machista. Fico pensando no sucesso oportuno de quantas lutam por carreiras igualitárias, distribuição de tarefas domésticas, acesso político representativo numericamente, e insisto no direito comum ao prazer. É lógico que a Bíblia remete ao ato sexual como condição de reprodução, mas o espírito de Lilith reclama mais, muito mais. Será que não é hora de celebrar a rebeldia doméstica e questionar mais do que posições femininas na sociedade civil? Fico imaginando a oportunidade da “história alternativa” e penso no veneno positivo de outras versões da Bíblia.