Para Carl Schmertmann
Na velocidade dos acontecimentos, na vertigem das comunicações aceleradas pelos avanços eletrônicos, as ciências humanas têm exercitado um verbo transitivo que poderia parecer doido até pouco tempo “ressignificar”. Pois bem, vou tentar dar novo significado para uma antiga discussão: o papel do carnaval dividido entre a alegria e o julgamento político. Antes do bla-bla-bla acadêmico, preciso dizer que mandei o artigo “A VERDADE VOS FARÁ LIVRE: e então é carnaval, eh?!” para uma lista de ex-alunos estrangeiros. Para encurtar a longa história, trata-se de uma turma de então jovens norte-americanos, estudantes na USP há 40 anos. Imagine…
Foi postar o texto e uma pergunta repontar instigante “JC, você quer dizer que o tom do Carnaval mudou?”, E sagaz, não satisfeito, prosseguiu “A crítica social e política continua (por ex. no enredo da Mangueira), mas o bom humor, os comentários irreverentes, e um certo espírito comunal já passaram?”. E me crucificou com um fatal “É isto?”. Gelei… Gelei, mas depois de ruminar ideias, ajustar teorias, me vi pronto para responder. E não poderia ser por whatsapp…
Império Serrano aborda os costumes ao destacar que Lugar de Mulher É Onde Ela Quiser
As duas propostas mais vigorosas em termos de interpretação cultural do nosso carnaval remetem ao significado implícito do evento no calendário. Lembremos com Jorge Amado que somos assinalados como o “País do Carnaval” (o “cacau” e o “suor” vêm depois). E convém lembrar que a relevância da festa no calendário nacional independe das possíveis origens, da estrutura festiva, das variedades de manifestações.
Roberto DaMatta é o mais popular tradutor da visão dos dias momescos como o inverso do cotidiano. Renato Ortiz valoriza o avesso disto, professando que, pelo contrário, o carnaval reafirma o cotidiano, não desmente nada. No primeiro caso, a permissão, a licença irreverente, a picardia têm todo espaço para exercer a função crítica, livre e democrática, sem censura. Sob outra chave, o alvará analítico de Ortiz desafia situações e fatos sem que, contudo, deixem de existir as instituições que autorizam tais fórmulas. Para DaMatta, cria-se um espaço de absoluto livre-arbítrio, onde o não limite é o limite das coisas. Ortiz, muito mais severo, demonstra que o Estado continua existindo, as instituições de controle e atendimento também (policiamento, hospitais, meios de transportes, turismo…). Então, delineadas as matrizes problematizadoras da relevância sociocultural da programação carnavalesca, resta perguntar, mas e daí? Crítica ou irreverência; gozação ou teor político? Certamente não vale empatar o jogo e cair na simplificação “ah, os dois” ou “no Brasil tudo pode”.
As representações da Estação Primeira têm incomodado os carolas
O famoso jeitinho (outra vez Roberto DaMatta) é a saída fácil e até histórica. Quando não nos damos o direito de profundidade, abrimos a comporta do vale tudo ou do tudo junto e misturado. Pensando na responsabilidade de uma resposta algo mais rigorosa, levando em conta o momento político que atravessamos, optei por hierarquizar os argumentos. Para mim, em primeiro lugar, independente da irreverência inerente às manifestações de rua (portanto aos blocos que se multiplicam espantosamente), as Escolas de Samba têm assumido o tal tom crítico, político, ácido e eficaz em sua abrangência. Vive-se um pouco um jogo de atacado e varejo. No geral, no atacado, para significar o carnaval em sua legitimidade brasileira, é o enredo das Escolas de Samba que vale mais, que manda o recado, que diz o que quer dizer. No fanfarrão, na alegria isolada do varejo, sem se constituir em proposta organizada, previamente articulada e com enredo, são os cordões, as bandas, os corsos que dão conta e se bastam.
Interessa neste ponto considerar o uso corriqueiro dos termos “brincar carnaval”, “pular carnaval” e “desfilar em Escola de samba”. Veja que não são sinônimos. Não!… Brincar, se brinca em blocos, nas ruas, sem muito ordenamento ou pontos a serem somados em concursos, julgados por jurados especializados e em tempo regulado. Pular, se pula em salões fechados, em clubes e com controle institucional apenas. Desfilar, ah desfilar… Desfilar é em Escola de samba, com enredo escolhido e planejado ao longo de meses, com investimento de cartolas, carnavalescos profissionais. E aqui vale a porosidade cívica que se traveste de deboche para dizer o que tem que ser dito e, tomando o Rio de Janeiro como padrão, mostrado mundialmente.
Pode-se pular ou brincar o carnaval, mas, em termos de saliência e pertencimento comunal, é a Escola de samba que dá o tom. Viva, a Mangueira que manda o recado “A VERDADE VOS FARÁ LIVRE”.