(Resposta da jornalista do Estadão aos ataques públicos desferidos pelo presidente)
Debate democrático saudável pressupõe que as pessoas saiam dos seus guetos
“Vera Magalhães, eu não sou da sua laia.” Esta foi, provavelmente, a única verdade proferida pelo presidente Jair Bolsonaro em sua última live, na quinta-feira, em que dedicou longos minutos a me atacar pessoalmente e a mentir de forma nonsense a respeito da informação que divulguei dois dias antes de que ele compartilhou dois vídeos, durante o carnaval, convocando para as manifestações do dia 15 de março a favor de seu governo e contra o Congresso.
A refutação passo a passo do besteirol de Bolsonaro a respeito dos vídeos eu já fiz no BR Político, neste jornal e nas redes sociais, e outros veículos jornalísticos a divulgaram com destaque, o que mostra a força da imprensa diante das tentativas de enfraquecê-la. Então, esta coluna não é sobre isso.
Resposta curta e grossa da colunista do Estadão: “Minha laia é a dos jornalistas!”
Mas a palavra “laia”, proferida com o costumeiro ódio pelo capitão, ressoa na minha cabeça desde então. Pela definição do dicionário, laia significa “categoria de seres ou coisas agrupados segundo determinada característica; classe, espécie, gênero, tipo”.
A conotação que Bolsonaro quis dar ao dirigi-la a mim foi pejorativa. Mas ela me atingiu nos brios, me remeteu a origem, a princípios. Afinal, qual é a minha laia? A minha é a laia dos jornalistas, a que pertenço há 27 anos e contando. É uma laia que apanha de todo lado, mas não verga. É uma laia que busca, sim, o furo, já que a notícia e a informação são a fonte que vai adubar o solo da história e fornecer a matéria-prima para que a sociedade mude, evolua.
E você, leitor, qual a sua laia? Nesses dias de debate ainda mais acalorado que me vi impelida a travar na ágora moderna das redes sociais, houve muita solidariedade e empatia, mas também veio à tona, como um refluxo, a crítica segundo a qual eu, outros jornalistas e a imprensa seríamos “culpados” por termos “normalizado” Bolsonaro e feito “falso paralelismo” entre ele e o PT, e, por isso, “mereceríamos” os ataques que sofremos.
O papel da imprensa é expor os fatos a respeito de qualquer governo, de qualquer partido. Os arroubos autoritários de Bolsonaro nunca foram ignorados nem “normalizados” (urge achar palavra melhor) pela imprensa. Não houve paralelismo entre esse e os demais inúmeros problemas de Bolsonaro e os reais e diversos problemas do PT.
Os vícios do PT no poder foram dilapidar a economia, pilhar os cofres públicos, aparelhar todos os espaços com amigos, traçar um projeto de poder e colocar em ação uma máquina para perpetuar esse projeto por meio da corrupção.
Os desvarios de Bolsonaro não apagam nada disso. E lembrar esses fatos não é passar pano ou fazer falso paralelismo, mas entender parte do fenômeno histórico que nos trouxe até aqui.
Descontrolado diante dos vídeos, afirmou que teriam sido feitos em 2015, mas não explicou imagens de 2018
A imprensa teve erros? Teve, sempre tem. Ter subestimado a força de Bolsonaro, não ter percebido que ele estava inserido no movimento global de fortalecimento da far-right reacionária e falsamente conservadora e não ter mapeado suas conexões no empresariado, no meio evangélico e no submundo das redes sociais, vitais para sua consolidação.
Mas não houve “normalização”. Isso é viagem de ácido de uma esquerda que está presa num discurso antigo. O lado “anormal” de Bolsonaro foi justamente o mais destacado em debates, entrevistas e perfis, e as pessoas votaram nele POR ISSO, e não APESAR DISSO.
“Ah, então por que vocês se espantam com os absurdos de agora, se era uma escolha muito difícil?”, manda o arrogante ironicão no Twitter. Não é espanto: é cobrar de quem ocupa a Presidência que se institucionalize, sob pena de ser enquadrado pelo sistema de freios e contrapesos da Constituição.
É preciso que este seja o foco do debate público, sob pena de que ele fique, de fato, preso à armadilha em que os guetos querem confiná-lo.