Historiadora Leyla Dakhli escreveu sobre quatro “filhas” da Primavera Árabe
Quatro mulheres, de trajetórias bem diferentes. Sem se conhecerem, compartilham lutas e demandas comuns
A frase — curta e grossa — apareceu escrita no peito nu de Amina Sboui. Em complemento, encadeava-se uma outra: “E não pertence à honra de ninguém”. Seios de fora, cabelos curtos, batom vermelho claro nos lábios, recostada, irreverente, apertada num jeans bem abaixo do umbigo, um cigarro na mão, um livro na outra, o ar desafiador, a postagem viralizou nas mídias sociais e provocou um efeito devastador nos meios patriarcais da Tunísia e de todo o mundo árabe, enfurecendo os conservadores e animando os jovens comprometidos com propostas alternativas.
Amina Sboui chocou quando mostrou o peito a frase “Meu corpo é meu”
A historiadora Leyla Dakhli escreveu um ensaio sobre as mulheres “filhas” da Primavera Árabe, designação para os movimentos sociais democráticos que, em 2011, abalaram ditaduras e regimes autoritários em todo o mundo árabe, em especial, na Tunísia, no Egito, na Líbia e na Síria. É certo que os resultados imediatos não corresponderam às esperanças suscitadas, apenas na Tunísia foi possível chegar a uma abertura institucionalizada. Entretanto, embora reprimida e contida, a Primavera lançou sementes que continuam a germinar. Basta ver as lutas emancipatórias que se desenrolam agora — e com notável força —, na Argélia, no Líbano, no Sudão e no Iraque.
Além de Amina, a historiadora relacionou mais três personagens, também expressivas, e que participam dos conflitos atuais: Samira Ibrahim, egípcia; Malak Alaywe Herz, libanesa; e Alaa Salah, sudanesa. Samira Ibrahim, rosto sério, contido, véu cobrindo os cabelos, mas deixando o rosto de fora, olhos determinados, ativista das manifestações da Praça Tahir, no Cairo, que levaram à derrubada da ditadura de Hosni Mubarak, um tirano que se eternizava no poder há 30 anos. Nos embates que então se travaram, as mulheres foram objeto de selvagem repressão. Ora cercadas por gangues e policiais que batiam nelas e as estupravam, ora submetidas ao vexatório “teste de virgindade”, denunciaram as arbitrariedades do regime. Samira alcançou notoriedade — considerada, em 2012, uma das cem mulheres mais influentes do mundo — por abrir um processo contra o governo e contra o Exército, responsabilizando-os pelas exações cometidas. A Justiça afinal decretou a ilegalidade do “teste” infame.
Egípicia Samira Ibrahim participou da derrubada da ditadura de Hosni Mubarak
Malak Herz, com seus longos cabelos crespos, derramando-se sobre os ombros, sorriso contagiante num rosto grande, fez-se conhecida no contexto das manifestações que agitam ideias e instituições na sociedade libanesa. Em Beirute, no curso de um protesto, a polícia, como de hábito, descia o cacete nas gentes. Um fragmento de filme flagrou o exato momento em que Malak, vestida de jeans, ameaçada por um tira armado com um fuzil kalachnikov, que avança sobre ela, em vez de fugir, o enfrenta. Apoia-se na perna direita e abre um ângulo reto com a perna esquerda, como se fora uma capoeira, e chuta os colhões do policial, fazendo-o retroceder.
Libanesa Malak Herz deu chute de capoeira no saco de um policial
Alaa Salah incorpora outro tipo, vestida de branco, cabeça coberta, rosto à mostra, fala persuasiva. Virou notícia discursando, cantando, ritmando palavras de ordem, em cima do teto de um carro, em frente ao quartel-general do Exército sudanês. Encorajando as pessoas a permanecerem na luta por seus interesses e reivindicações. Não sem razão, os manifestantes a chamam por vários apelidos carinhosos: “rainha Núbia”, “mulher de branco” ou “senhora liberdade”.
A sudanesa Alaa Salah discursava no teto de um automóvel
Quatro mulheres, de trajetórias bem diferentes, de diversos países, extrações sociais e vocações profissionais. Sem se conhecerem, compartilham lutas e demandas comuns, democráticas. Uma democracia, porém, que, para ser digna deste título, reconheça e integre os direitos das mulheres, emancipadas, enfim, dos lugares e papéis — submissos — consagrados pelas tradições conservadoras. Estas mulheres rejeitam a condição de “ícones” que as mídias e redes sociais lhes querem atribuir. Preferem ver-se como participantes de um movimento vivo, que não quer e se recusa a sair de cena.
Uma inscrição nos muros de Bagdá resume bem suas aspirações: “revolte-se (no feminino), porque a revolução existe no feminino”.