Se, até este domingo, a constatação de que Jair Bolsonaro estava pregando um golpe — ou autogolpe — pedia alguma interpretação, ainda que óbvia fosse, a coisa agora mudou de figura. Ninguém precisa interpretar mais nada. É evidente que ele não disse a palavrinha “golpe” nem incitou, com exortação escancarada, os militares a silenciar os outros dois Poderes. Ocorre que disse o que disse em frente ao quartel-general do Exército, no dia dedicado à homenagem a essa Força, numa manifestação convocada justamente para defender o golpe militar e em favor de um novo AI-5. Fica a pergunta: é o que pensam os militares da ativa? Se não é, como a sociedade pode ter a certeza de que o limite de como a sociedade pode ter a certeza de que o limite de sua atuação será sempre a Constituição?
Trata-se, obviamente, da mais grave manifestação do presidente desde que assumiu o cargo. Provocando, como sempre, aglomeração, contrariando a ciência e o pacto civilizatório, demonstrou o seu jeito de entender a política: “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil. Chega da velha política. Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.” Bolsonaro quer “a ação de quem”? A sua e a de seus seguidores, nós já conhecemos. É evidente que está fazendo um chamamento a uma intervenção das Forças Armadas, sob o seu comando e as suas ordens.
Manifestação na avenida Paulista no domingo 19 incluiu o FORA DÓRIA
A retórica é típica do golpismo, inclusive os apelos à suposta democracia direta. Sempre que forças dessa natureza se manifestam, aquilo a que chamam “vontade do povo” é, na verdade, a vontade de quem prega que se rasgue a Constituição. Afinal, esta não valeria mais do que aquela. Nessa perspectiva, esses grupos consideram que a sua vontade se sobrepõe àquilo que está explicitado na Carta. Disse:
“Todos têm que ser patriotas, acreditar e fazer sua parte para colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. Mais que direito, vocês têm a obrigação de lutar pelo país de vocês. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Contem com o seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para manter a democracia e garantir o que há de mais sagrado: a nossa liberdade”.
Observem: ele prega a “vontade do povo”, a “democracia” e a “liberdade” num ato organizado em defesa do golpe militar, do fechamento dos outros dois Poderes e em defesa do AI-5. Como resta evidente desde que golpes militares são dados, ninguém o faz em nome da tirania e em defesa da violência.
O presidente, como dá para perceber, tomou a decisão consciente, clara e estridente de confrontar os dois Poderes. Esticou ainda mais a corda. E o fez pelo segundo dia consecutivo. No sábado, na rampa do Palácio do Planalto, também falando a manifestantes, apontou o dedo para o Supremo, afirmando que lá se havia decidido que ele não tem autonomia para interferir nos Estados.
Com a manifestação deste domingo, defendendo abertamente um golpe, encerra uma semana em que deixou claro que seus inimigos são o Supremo e o Congresso, com os quais, diz, não vai “negociar nada”. O que isso quer dizer?